terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

O Mal e o Mundo de Deus: Um Problema Especial



A natureza do problema

Tipos de soluções

Temas para lidar com o problema do mal

O mal como efeito secundário necessário da criação da humanidade

Uma reavaliaçâo do que constitui o bem e o mal

O mal em geral como conseqüência do pecado em geral

O mal específico como conseqüência de pecados específicos

Deus como a vítima do mal

A vida futura

A natureza do problema

Tratamos da natureza da providência divina e observamos que ela é universal: Deus controla tudo o que ocorre. Ele possui um plano para o universo inteiro e para todo o tempo, e está agindo para executar um bom piano. Mas uma sombra recai sobre essa doutrina confortante: o problema do mal.

O problema pode ser enunciado de modo simples ou mais complexo. David Hume enunciou de forma sucinta ao escrever sobre Deus: “Ele deseja prevenir o mal, mas não consegue? então é impotente. Ele consegue, mas não quer? então é male volente. Ele é capaz e também quer; de onde, então, vem o mal?” Pode-se também considerar que a existência do mal apresenta um problema para a oração que muitas crianças aprenderam a fazer antes das refeições: “Deus é grande, Deus é bom. Vamos lhe agradecer pelo alimento”. Pois, se Deus é grande, ele pode evitar que o mal ocorra. Se Deus é bom, ele não deve desejar que o mal ocorra. Mas há muitos males que se evidenciam à nossa volta. O problema do mal, portanto, pode ser entendido como um conflito que envolve três conceitos: o poder de Deus, a bondade de Deus e a presença do mal no mundo. O senso comum parece nos dizer que os três não podem ser verdade.

Há dois tipos gerais de males que fazem precipitar esse dilema. Por um lado, há o que costuma ser denominado mal natural. Esse é o mal que não envolve a vontade e a ação humana, sendo um simples aspecto da natureza que parece agir contra o bem-estar dos homens. As forças destrutivas da natureza incluem furacões, terremotos, tornados e o sofrimento e a perda de vidas humanas causados por doenças tais como o câncer, a fibrose cística e a esclerose múltipla. O outro tipo de mal é denominado mal moral. Esses são os males que podem ser atribuídos à escolha e à ação de agentes morais livres. Aqui encontramos guerra, crime, crueldade, luta, discriminação, escravidão e injustiças por demais numerosas para serem mencionadas. Embora os males morais possam ser até certo ponto excluídos de nossa consideração, caso os atribuamos ao livre arbítrio humano, os males naturais não podem ficar fora de nossa consideração.

O problema do mal assume diferentes formas. Em geral, a forma religiosa do problema do mal ocorre quando algum aspecto especifico da experiência do indivíduo o faz questionar a grandeza ou a bondade de Deus, e, portanto, ameaça o relacionamento entre o crente e Deus. A forma teológica do problema preocupa-se com o mal em geral. O problema não está em descobrir como determinada situação concreta pode existir tendo em vista o fato de Deus ser quem é e o que é, mas no motivo pelo qual tal problema pode exístir. E importante observar essas distinções, pois, como destacou Alvin Plantinga, a pessoa a quem um mal específico esteja apresentando uma dificuldade religiosa pode precisar maís de cuidado pastoral que de ajuda para resolver problemas intelectuais. De modo semelhante, tratar um conflito genuinamente intelectual como uma simples questão de sentimentos não ajudará muito. A falha no reconhecimento da modalidade religiosa do problema do mal parecerá insensibilidade; a falha no tratamento da modalidade teológica parecerá um insulto intelectual. Especialmente quando as duas formas aparecem juntas, é importante reconhecer e distinguir os respectivos componentes.

Tipos de soluções

Tem havido muitos tipos diferentes de teodicéias, ou seja, tentativas de mostrar que Deus não é responsável pelo mal. Na maioria dos casos (nossa análise aqui é um tanto supersimplificada) essas tentativas de solução trabalham reduzindo a tensão, modificando um ou mais dos três elementos que, combinados, causam o dilema: a grandeza de Deus, sua bondade e a presença do mal.

Um modo de resolver a tensão do problema que estamos descrevendo é abandonar a idéia da onipotência de Deus. Essa concepção, chamada finitismo, é muitas vezes encontrada em dualismos tais como o zoroastrismo ou o maniqueísmo. Esses dualismos Deus e o poder do mal. Deus esta tentando vencer o mal e o venceria se pudesse, mas não é capaz fazê-lo

Um segundo modo de diminuir a tensão do problema e modificar a idéia da bondade de Deus. Poucos (ou nenhum) dos que se consideram cristãos negariam a bondade de Deus, mas há os que, pelo menos por implicação, insinuam que a bondade deve ser entendida de forma levemente diferente do que se costuma. Um dos que entram nessa categoria é Gordon H. Clark.

Calvinista dedicado, Clark não hesita em usar o termo determinismo para descrever Deus causando todas as coisas, inclusive os atos humanos. Com respeito à relação entre Deus e algumas ações más dos seres humanos, ele chega a afirmar:

“Quero afirmar muito franca e incisivamente que se uma pessoa fica bêbada e atira na família, era vontade de Deus que ela o fizesse”. Já que Deus é a única causa primeira de todas as coisas e tudo o que Deus causa é bom, Clark conclui que é bom e correto que Deus (em última análise) provoque tais atos maus como o bêbado atirando na família, embora Deus não peque e não seja responsável por esse ato pecaminoso. É claro que, nessa solução do problema do mal, o termo bondade passa por uma transformação tal que se torna bem diferente do que em geral se entende por bondade de Deus.

Uma terceira solução proposta para o problema do mal rejeita o mal, tornando desnecessária toda justificativa de sua coexistência com um Deus onipotente e bom. Encontramos essa idéia em várias formas de panteíesmo. A filosofia do Benedictus Spinoza, por exemplo, sustenta que existe apenas uma substância, e todas as coisas discerníveis são modos ou atributos dessa substância. Tudo é causado de uma forma determinista; Deus traz todas as coisas à existência na mais alta perfeição. Uma versão mais popular, mas consideravelmente menos elaborada, dessa solução para o problema do mal é encontrada na Ciência Cristã, que afirma que o mal em geral e, em particular, a doença, é uma ilusão; ele não é real.

Temas para lidar com o problema do mal

Uma solução completa do problema está além da capacidade humana. Portanto, o que faremos aqui é a alguns temas que, combinados, irão nos ajudar a lidar com o problema. Esses temas serão coerentes com as doutrinas básicas da teologia expostas neste escrito. Essa teologia pode ser caracterizada como um calvinismo suave que dá lugar central à soberania de Deus, ao mesmo tempo em que procura relacioná-la de forma positiva com a liberdade e a individualidade humana. Essa teologia é um dualismo em que o segundo elemento depende do primeiro ou dele deriva. Ou seja, há realidades à parte de Deus que possuem existência própria, genuína e boa, mas que, em última análise, dele receberam a existência por criação (não emanação). Essa teologia também afirma o pecado e a queda da raça humana e a conseqüente pecaminosidade de cada ser humano; a realidade do mal e dos seres demoníacos pessoais encabeçados pelo diabo; a encarnação da Segunda Pessoa do Deus Triúno, que se tornou uma expiação sacrifical pelos pecados da humanidade; e uma vida eterna além da morte. É no contexto dessa estrutura teológica que os seguintes temas são apresentados como recursos que ajudam a lidar com o problema do mal:

O mal como efeito secundário necessário da criação da humanidade

Há coisas que Deus não pode fazer. Deus não pode ser cruel, pois a crueldade é contrária à sua natureza. Ele não pode mentir. Ele não pode quebrar suas promessas. Há algumas outras coisas que Deus não pode fazer sem algumas conseqüências inevitáveis. Por exemplo, Deus não pode fazer um círculo, um verdadeiro círculo, sem que todos os pontos da circunferência sejam eqüidistantes do centro. De modo semelhante, Deus não pode fazer um homem sem certas características que lhe são próprias.

Os homens não seriam humanos se não possuíssem livre arbítrio. Quer os homens sejam livres no sentido assumido pelos arminianos, quer sejam livres em um sentido que não seja incoerente com a idéia de que Deus determinou o que irá acontecer, o fato de que Deus fez os homens segundo seu propósito significa que temos certas capacidades (e.g., as capacidades de desejar e de agir) que não poderíamos exercer plenamente caso não houvesse algo como o mal. Se Deus tivesse evitado o mal, teria de nos fazer diferentes do que somos. Para sermos realmente humanos, precisamos ter a capacidade de desejar ter e fazer coisas das quais algumas não serão as que Deus deseja que tenhamos ou façamos. O mal, portanto, era um complemento necessário do bom plano de Deus para nos fazer plenamente humanos.

Outra dimensão desse tema é que para Deus fazer o mundo material tal como é, exigem-se certos elementos concomitantes. Aparentemente, para que os humanos tivessem uma escolha moral genuína, com a possibffidade de uma punição genuína para a desobediência, era preciso que fossem passíveis de morte. Além disso, a manutenção da vida exigia condições que poderiam levar, alternativamente, à morte. Assim, por exemplo, precisamos de água para viver. Mas a mesma água que bebemos pode, em outras circunstâncias, entrar em nossos pulmões, cortando nosso suprimento de oxigênio e deixando-nos, desse modo, sufocados. A água que é necessária para manter a vida também pode cortá-la.

Embora uma solução completa do problema do mal esteja além da capacidade humana, o mal pode ser um complemento necessário do plano de Deus para nos fazer plenamente humanos ou o meio para um bem maior.

Neste ponto alguém pode levantar a pergunta: “Se Deus não podia criar o mundo sem a possibilidade concomitante do mal, por que ele criou assim mesmo, ou por que ele não criou o mundo sem os homens?” Em certo sentido, não podemos responder essa pergunta porque não somos Deus, mas cabe notar aqui que Deus escolheu o maior bem. Ele preferiu criar a não criar, e criar seres humanos a algo inferior. Decidiu criar seres que teriam comunhão com ele e lhe obedeceriam, seres que escolheriam fazer isso, mesmo sob a tentação de agir de outra maneira. Isso, evidentemente, era um bem maior que introduzir a “humanidade” num ambiente totalmente anti-séptico, do qual até a possibilidade lógica de desejar algo contrário à vontade de Deus estaria excluída.

Uma reavaliação do que constitui o bem e o mal

Parte do que consideramos bem e mal pode não o ser na realidade. É, portanto, necessário examinar com muito cuidado o que constitui o bem e o mal.

Em primeiro lugar, precisamos considerar a dimensão divina. O bem não deve ser definido de acordo com o que traz prazer pessoal para os homens de forma direta. O bem deve ser definido em relação com a vontade e a natureza de Deus, O bem é o que o glorifica, cumpre sua vontade, está de acordo com sua natureza. A promessa de Romanos 8.28 é às vezes citada de forma um tanto impensada pelos cristãos: “Sabemos que todas as cousas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito”. Mas que bem é esse? Paulo nos responde no versículo 29: “Porquanto aos que de antemão conheceu, também predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos”. Isto, portanto, é o bem: não a riqueza ou a saúde pessoal, mas ser conforme a imagem do Filho de Deus. Não é o conforto a curto prazo, mas o bem-estar a longo prazo para a humanidade, segundo o que é determinado pelo conhecimento e pela sabedoria de Deus.

Em segundo lugar, precisamos considerar a dimensão do tempo ou a duração. Alguns dos males que experimentamos são na realidade muito perturbadores a curto prazo, mas, numa obra de longo prazo, um bem muito maior. A dor da broca do dentista e o sofrimento da recuperação pós-operatória parecem males muito severos, mas, na realidade, são muito pequenos em relação às conseqüências que, a longo prazo, decorrem deles. As Escrituras nos encorajam a avaliar nosso sofri mento temporário em relação à eternidade. Paulo disse: “tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser comparados com a glória a ser a revelada em nós” (Rm 8.18; veja também 2Co 4.17; Hb 12.2; lPe 1.6,7). Os problemas ficam muitas vezes aumentados por estarem muito próximos de nós no momento, de modo que se tornam desproporcionais em relação a outros assuntos d pertinentes. Uma boa pergunta para fazer diante de qualquer mal aparente é: “Qual a importância que isso terá para mim daqui um ano? cinco anos? um milhão P de anos?

Em terceiro lugar, há o problema da extensão do mal. Temos a tendência de ser muito individualistas em nossa avaliação do bem e do mal. Mas este mundo é grande e complexo, e Deus tem muitas pessoas de quem cuidar. A chuva de sábado que estraga o piquenique da família ou uma partida de golfe pode me parecer um mal, mas ser um bem muito maior para os agricultores cujas terras ressecadas circundam o campo de golfe ou o parque, e, no final, para um número muito maior de pessoas que dependem das colheitas dos agricultores, dos preços que serão afetados pela abundância ou escassez de oferta.

Parte do que estamos dizendo aqui é que o que parece ser um mal pode ser em C alguns casos, na realidade, o meio para um bem maior. Embora talvez não compreendamos, os planos e as ações de Deus não se tornam bons de acordo com as conseqüências. Antes, o que faz com que os planos e as ações de Deus sejam bons é o fato de que ele os desejou.

O mal em geral como conseqüência do pecado em geral

Uma doutrina fundamental da teologia que está sendo desenvolvida neste livro é o fato do pecado racial. Não estamos, com isso, falando do pecado de uma raça contra outra, mas do fato de que toda a raça humana pecou, sendo agora pecadora. Por meio de sua cabeça, Adão, toda a raça humana violou a vontade de Deus e caiu do estado de inocência em que Deus havia criado a humanidade. Por conseguinte, todos nós começamos a vida com uma tendência natural para o pecado. A Bíblia nos diz que, com a queda, o primeiro pecado da humanidade, houve uma mudança radical no universo. A morte atingiu a humanidade (Gn 2.17; 3.2,3, 19). Deus pronunciou contra ela uma maldição que é representada por certos fatores específicos: dores de parto (3.16), dominação do homem sobre a esposa (v. 16), trabalho pesado (v. 17), cardos e abrolhos (v. 18). Parece que esses itens são apenas exemplos dos verdadeiros efeitos sobre a criação. Paulo, em Romanos 8, afirma que toda a criação foi afetada pelo pecado da humanidade, estando agora escravizada à corrupção. Ela aguarda sua redenção dessa escravidão. Portanto, parece provável que toda a hoste de males naturais também pode ter resultado do pecado da humanidade.

Mais sério e mais óbvio, entretanto, é o efeito da queda na promoção do mal moral, ou seja, o mal relacionado com a vontade e a ação humana. Não há dúvida de que boa parte do sofrimento e da infelicidade dos seres humanos é uma conseqüência do mal estrutural na sociedade. Por exemplo, o poder pode residir nas mãos de uns poucos que o usam para explorar outros. O egoísmo numa escala coletiva pode manter certa classe social ou algum grupo racial em condições dolorosas ou precárias.

Há uma pergunta importante que deve ser feita aqui: como pode ter surgido o primeiro pecado? Parte da resposta é que os homens devem ter uma opção para serem genuinamente livres. A escolha é obedecer ou desobedecer a Deus. No caso de Adão e Eva, a árvore do conhecimento do bem e do mal simbolizava tal escolha (Gn 2.17). Quando desobedeceram a Deus, o relacionamento que tinham com ele ficou distorcido, e o pecado tomou-se uma realidade. Os homens têm sido grande- mente afetados pelo pecado: atitudes, valores e relacionamentos foram mudados. No caso de Adão e Eva, essa mudança refletiu-se em sua nova consciência da nudez, no medo de Deus e na falta de disposição para aceitar a responsabilidade pelo pecado.

Está claro, portanto, que Deus não criou o pecado. Ele apenas providenciou as opções necessárias para que o homem fosse livre, opções que poderiam resultar em pecado. Foram os homens que pecaram, não Deus.

O mal específico como conseqüência de pecados específicos

Alguns males específicos são conseqüência de pecados ou, pelo menos, imprudências específicas. Algumas das ocorrências más na vida são causadas pelos atos pecaminosos de outras pessoas. Homicídio, abuso de crianças, roubo e estupro são males ligados ao exercício de escolhas pecaminosas por parte de indivíduos pecadores. Em alguns casos, a vítima é inocente do mal que ocorre. Em outros casos, porém, a “vítima” contribui para que ocorra o ato mau ou o provoca.

Em um considerável número de casos, trazemos o mal sobre nós mesmos por meio de nossas ações pecaminosas ou insensatas. Precisamos de muito cuidado neste ponto. Os amigos de Jó estavam inclinados a atribuir suas agruras apenas a seus pecados (e.g. Jó 22). Mas Jesus indicou que a tragédia nem sempre é conseqüência de um pecado especifico. Quando seus discípulos perguntaram a respeito do homem que havia nascido cego: “Mestre, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?” Jesus respondeu: “Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi para que se manifestem nele as obras de Deus” (lo 9.2,3). Jesus não estava dizendo que o homem e seus pais não haviam pecado; antes, estava refutando a idéia de que a cegueira era conseqüência de um pecado especifico. É insensatez es atribuir automaticamente os infortúnios da pessoa ao seu pecado.

Mas depois dessa advertência, precisamos observar que há casos de pecado que resultam em infortúnios sobre o indivíduo pecador. Um exemplo é Davi, cujo pecado com Bate-Seba e assassínio de Urias resultaram na morte do filho de Davi e Bate-Seba, bem como em conflitos na própria família de Davi. Talvez isso deva ser visto mais como efeitos de certos atos que punição de Deus. Não sabemos o fatores envolvidos, mas bem pode ser que certas condições presentes no momento do adultério tenham resultado num defeito genético na criança. E o sentimento de pr culpa de Davi pode tê-lo tornado indulgente com os filhos, coisa que, por sua vez, ha levou-os a pecar. Boa parte do mal relatado nas Escrituras sobreveio às pessoas em tai decorrência de seu próprio pecado, ou do pecado de alguém próximo a elas. se

Paulo disse: “Não vos enganeis: de Deus não se zomba; pois aquilo que o ti\ homem semear, isso também ceifará. Porque o que semeia para a sua própria carne re da carne colherá corrupção; mas o que semeia para o Espírito do Espírito colherá PC vida eterna” (Gl 6.7,8). Embora seja provável que Paulo estivesse pensando primeiramente na dimensão eterna das conseqüências do pecado, o contexto (a parte inicial do cap. 6) parece indicar que ele também tinha em mente os efeitos temporais. Quem quer que viole as leis contra o adultério (Ex 20.14) pode descobrir que o resultado é a destruição das relações de confiança, não apenas com o cônjuge, mas também com os filhos. Quem se embebeda habitualmente bem pode destruir a saúde, conseguindo uma cirrose hepática. Deus não o está atacando; antes, o pecado do bêbado faz surgir a doença. Isso não quer dizer, porém, que Deus não pode usar as conseqüências naturais do pecado para disciplinar as pessoas.

Deus como a vítima do mal

A idéia de que Deus assumiu sobre si mesmo o pecado e seus efeitos maus é uma contribuição sem igual da doutrina cristã para resolver o problema do pecado. É notável que, apesar de saber que ele mesmo seria a vítima (aliás, a maior vítima) do mal que resultaria do pecado, Deus permitiu que o pecado ocorresse. A Bíblia nos diz que Deus ficou afligido pelo pecado da humanidade (Gn 6.6). Embora certamente haja um antropomorfismo aqui, ainda indica que o pecado da humanidade é doloroso ou prejudicial para Deus. Ainda mais preciso é o fato da encarnação. O Deus Triúno sabia que a Segunda Pessoa viria à terra e ficaria sujeito a inúmeros males: fome, fadiga, traição, ridículo, rejeição, sofrimento e morte. Ele fez isso para anular o pecado e, com isso, seus efeitos malignos. Deus é nosso companheiro de sofrimentos nos males deste mundo, e, por conseguinte, é capaz de nos livrar do mal. Como é grande esse amor! Qualquer um que deseje impugnar a bondade de Deus por permitir o pecado e, conseqüentemente, o mal, deve medir essa acusação de acordo com o ensino bíblico de que Deus mesmo se tornou a vítima do mal para que pudéssemos ser vitoriosos sobre o mal.

A vida futura

Não há dúvidas de que nesta vida existem o que parecem exemplos claros de injustiça e sofrimento de inocentes. Se esta vida fosse a única, com certeza o problema do mal seria insolúvel. Mas a doutrina cristã da vida futura ensina que haverá um grande tempo de julgamento — cada pecado será reconhecido e os fiéis também serão revelados. O julgamento será totalmente justo. A punição para o mal será ministrada, e a dimensão final da vida eterna será assegurada para os que tiverem atendido à oferta amorosa de Deus. Assim, a reclamação do salmista a respeito da prosperidade do mau e do sofrimento do justo será satisfeita na vida do porvir.


Fonte: ERICKSON, Millard J., Introdução à Teologia Sistemática, São Paulo, Edições Vida Nova. pp 183 – 191.

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E o Mal?

Por Wayne Grudem

Se Deus de fato causa, mediante a sua ação providencial, tudo o que vem a acontecer no mundo, então surge a pergunta: “Qual a relação entre Deus e o mal que existe no mundo?” Será que Deus realmente causa os atos maus das pessoas? Se o faz, então não seria Deus responsável pelo pecado?

Para tratar dessa questão, melhor é primeiro ler as passagens bíblicas que mais diretamente a abordam. Podemos começar pela análise de várias passagens que afirmam que Deus, de fato, provocou acontecimentos maus e fez que se cometessem atos maus. Mas é importante lembrar que em todas essas passagens fica bem claro que as Escrituras, em momento nenhum, retratam Deus fazendo diretamente algo mau; retratam, sim, Deus causando atos maus por meio das ações voluntárias das criaturas morais. Além disso, as Escrituras jamais culpam a Deus pelo mal nem dão a entender que Deus encontra prazer no mal tampouco desculpam aos homens o mal que cometem. Seja como for que compreendamos a relação de Deus com o mal, jamais devemos chegar ao ponto de não nos julgar responsáveis pelo mal que fazemos, ou de pensar que Deus encontra prazer no mal, ou é culpado dele. Tal conclusão contraria nitidamente as Escrituras.

Existem literalmente dezenas de passagens bíblicas que afirmam que Deus (indiretamente) provocou algum tipo de mal. Cito uma lista bastante extensa (nos próximos parágrafos), porque os cristãos muitas vezes não se dão conta da extensão desse franco ensino bíblico. Porém, devemos lembrar que, em todos esses exemplos, o mal é na verdade cometido não por Deus, mas por pessoas ou demônios que decidiram fazê-lo.

Um exemplo bem claro se encontra na história de José. As Escrituras dizem com grande clareza que os irmãos de José tinham, injustamente, inveja dele (Gn 37.11), que o odiavam (Gn 37.4, 5, 8), que queriam matá-lo (Gn 37.20) e que cometeram um crime jogando-o dentro de uma cisterna (Gn 37.24), vendendo-o depois como escravo aos egípcios (Gn 37.2 8). Porém, mais tarde José pôde dizer aos seus irmãos: “Para conservação da vida, Deus me enviou adiante de vás” (Gn 45.5) e “Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem, para fazer, como vedes agora, que se conserve muita gente em vida” (Gn 50.20). Aqui temos uma combinação de atos maus provocados por homens pecadores, que são justamente responsabilizados pelo seu pecado, e do irresistível controle providencial de Deus, por meio do qual se cumprem os desígnios divinos. Ambos estão claramente afirmados.

O relato do êxodo do Egito afirma repetidamente que Deus endureceu o coração do faraó; Deus diz: “Eu lhe endurecerei o coração” (Ex 4.21), “Endurecerei o coração de Faraó” (Éx 7.3), “O SENHOR endureceu o coração de Faraó” (Êx 9.12), “O SENHOR, porém, endureceu o coração de Faraó” (Ex 10.20, repetido em 10.27 e novamente em 11.10), “Endurecerei o coração de Faraó” (Ex 14.4) e «O SENHOR endureceu o coração de Faraó, rei do Egito” (Ex 14.8). As vezes se contrapõe que a Bíblia também diz que o faraó endureceu o próprio coração (Êx 8.15, 32; 9.34), e que a decisão divina de endurecer o coração do faraó não passou de uma reação à rebeldia inicial e à dureza de coração que o faraó revelara por contra própria. Mas é importante notar que as promessas divinas de endurecer o coração do faraó (Ex 4.21; 7.3) são feitas bem antes de as Escrituras nos dizerem que o faraó endurecera o próprio coração (lemos isso pela primeira vez só em x 8.15). Ademais, a análise da cooperação que fizemos acima, segundo a qual os agentes Divino e humano podem provocar o mesmo evento, deve-nos mostrar que os dois fatores podem ser verdadeiros simultaneamente: mesmo quando o faraó endurece o próprio oração, não é incompatível dizer que Deus induz o faraó a fazê-lo e que, portanto, é Deus quem endurece o coração do faraó. Finalmente, se alguém objetar que Deus está apenas intensificando os maus desejos e decisões que já estavam no coração do faraó, então esse pode ação poderia assim mesmo, teoricamente, explicar todo o mal que há hoje no mundo, pois todas as pessoas têm desejos maus no coração e de fato tomam decisões más.

Qual era o propósito de Deus nisso? Paulo, ponderando Êxodo 9.16, diz: “Porque a Escritura diz a Faraó: Para isto mesmo te levantei, para mostrar em ti o meu poder e para que o meu nome seja anunciado por toda a terra” (Rm 9.17). Depois Paulo infere uma verdade geral desse exemplo específico: “Logo, tem ele misericórdia de quem quer e também endurece a quem lhe apraz” (Rm 9.18). De fato, Deus também endureceu o coração do povo egípcio, para que perseguissem Israel até o mar Vermelho: “Eis que endurecerei coração dos egípcios, para que vos sigam e entrem nele; serei glorificado em Faraó e em todo o seu exército, nos seus carros e nos seus cavalarianos” (Éx 14.17). Esse tema se repete rn Salmos 105.25: “Mudou-lhes o coração para que odiassem o seu povo”.

Mais tarde, ainda na narrativa do Antigo Testamento, encontram-se exemplos semelhantes no caso dos cananeus, destruídos na conquista da Palestina sob o comando Josué. Lemos: “Porquanto do SENHOR vinha o endurecimento do seu coração para irem à guerra contra Israel, a fim de que fossem totalmente destruídos” Os 11.20; ver também Jz 3.12; 9.23). E a obstinação de Sansão em casar-se com uma filistéia descrente vinha do SENHOR; pois este procurava ocasião contra os filisteus; porquanto, naquele tempo, os filisteus dominavam sobre Israel” (Jz 14.4). Também lemos que os filhos de Eli, quando repreendidos pelas suas iniqüidades, “não ouviram a voz de seu pai, porque o NHOR os queria matar” (lSm 2.25). Mais tarde, “da parte deste [ SENHOR] um espírito maligno” atormentava o rei Saul (lSm 16.14).

Quando Davi pecou, o SENHOR lhe disse por intermédio do profeta Natã: “Eis que da tua própria casa suscitarei o mal sobre ti, e tomarei tuas mulheres à tua própria vista, is darei a teu próximo, o qual se deitará com elas, em plena luz deste sol. Porque tu o fizeste em oculto, mas eu farei isto perante todo o Israel e perante o sol” (2Sm 12.11-12; cumprido em 16.22). Ainda como castigo pelo pecado de Davi, “o SENHOR feriu a criança e a mulher de Urias dera à luz a Davi; e a criança adoeceu gravemente” e acabou morrendo (2Sm 12.15-18). Davi permaneceu consciente do fato de que Deus podia suscitar mal contra ele, pois mais tarde, quando Simei amaldiçoou a Davi e atirou pedras contra e seus servos (2Sm 16.5-8), Davi se recusou a vingar-se de Simei, mas disse aos dados: “Deixai-o; que amaldiçoe, pois o SENHOR lhe ordenou” (2Sm 16.11).

Ainda mais tarde, o Senhor incitou Davi a fazer o censo do povo (2Sm 24.1), mas posteriormente Davi reconheceu seu ato como pecado, dizendo: “Muito pequei no que (2Sm 24.10), e Deus castigou a terra por causa desse pecado (2Sm 24.12-17). Porém, é também claro que “a ira do SENHOR [... acendeu-se] contra os israelitas” (2Sm 24.1), e tanto o fato de ter Deus incitado Davi ao pecado foi um meio pelo qual pôde punir o povo de Israel. Além disso, a forma como Deus incitou Davi fica clara em 1Crônicas 21: 1 “Satanás se levantou contra Israel e incitou a Davi a levantar o censo de Israel”. Nesse incidente a Bíblia nos faz uma notável revelação sobre as três influências que contribuíram de modos diferentes para um só ato: Deus, a fim de cumprir os seus desígnios, agiu por intermédio de Satanás para incitar Davi ao pecado, mas as Escrituras responsabilizam Davi pelo pecado. Novamente, depois que Salomão se afastou do Senhor por causa das suas mulheres estrangeiras, “levantou o SENHOR contra Salomão um adversário, Hadade. o edomita” (1Rs 11.14), e “também Deus levantou a Salomão outro adversário, Rezom, filho de Eliada” (lRs 11.23). Esses reis maus foram instigados por Deus.

Na história de Jó, embora o SENHOR tenha dado a Satanás permissão para trazer o mal às posses e aos filhos de Jó, e embora esse mal tenha vindo por meio de atos iníquos dos sabeus e dos caldeus, além de uma ventania (Jó 1.12, 15, 17, 19), assim mesmo Jó enxergou além dessas causas secundárias e, com os olhos da fé, viu tudo como ação da mão do Senhor:. “O SENHOR o deu e O SENHOR o tomou; bendito seja o nome do SENHOR” (Jó 1.21). O autor do Antigo Testamento, logo depois da declaração de Jó, diz o seguinte: “Em tudo isso Jó não pecou, nem atribuiu a Deus falta alguma” (Jó 1.22).Jó acabara de ficar sabendo que bandos de ímpios saqueadores haviam destruído suas ovelhas e seu gado, mas no entanto, com grande fé e paciência em meio à adversidade, diz: “O SENHOR o tomou”. Embora ele diga que o SENHOR fez isso, não culpa a Deus pelo mal nem diz que Deus fez algo de errado, mas exclama: “Bendito seja o nome do SENHOR!” Culpara Deus pelo mal que ele provocara por intermédio de agentes secundários seria pecado.Jó não o faz, as Escrituras jamais o fazem, nem devemos nós fazê-lo.

Em outros trechos do Antigo Testamento lemos que o Senhor “pôs o espírito mentiroso na boca” dos profetas de Acabe (1Rs 22.23) e enviou os ímpios assírios como “cetro da minha ira” para castigar Israel (Is 10.5). Também enviou os iníquos babilônios, inclusive Nabucodonosor, contra Israel, dizendo: “... os trarei contra esta terra, contra os seus moradores” (Jr 25.9). Depois Deus prometeu que, mais tarde, castigaria também os babilônios: “Castigarei a iniqüidade do rei da Babilônia e a desta nação, diz o SENHOR, como também a da terra dos caldeus; farei deles ruínas perpétuas” (Jr 25.12). Se um profeta enganador transmite uma mensagem falsa, diz o Senhor: “Se o profeta for enganado e falar alguma coisa, fui eu, o SENHOR, que enganei esse profeta; estenderei a mão contra ele e o eliminarei do meio do meu povo de Israel” (Ez 14.9, no contexto de castigo de Israel pela sua idolatria). Como culminância de uma série de perguntas retóricas às quais a resposta implícita é sempre “não”, pergunta Amós: “Tocar-se-á a trombeta na cidade, sem que o povo se estremeça? Sucederá algum mal à cidade, sem que o SENHOR o tenha feito?” (Am 3.6). Segue-se uma série de desastres naturais em Amós 4.6-12, em que o SENHOR lembra ao povo que ele lhes mandou a fome, a seca, o crestamento e a ferrugem, os gafanhotos, a peste, a morte dos homens e dos cavalos, “contudo, não vos convertestes a mim” (Am 4.6, 8, 9, 10, 11).

Em muitas passagens mencionadas acima, Deus traz o mal e a destruição ao povo em castigo pelos seus pecados: foram desobedientes ou desencaminharam-se para a idolatria, e assim o SENHOR lança mão de homens maus ou forças demoníacas ou ainda catástrofes “naturais” para castigá-los. (Nem sempre se diz ser esse o caso [basta lembrar José e Jó], mas muitas vezes o é.) Talvez essa idéia de castigo do pecado possa nos ajudar a compreender, pelo menos em parte, como Deus pode, com justiça, provocar acontecimentos danosos. Todos os seres humanos são pecadores, pois as Escrituras nos dizem que “todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3.23). Nenhum de nós merece o favor de Deus nem sua misericórdia, mas só condenação eterna. Portanto, quando Deus impõe o mal aos homens, quer para disciplinar seus filhos, quer para levar os descrentes ao arrependimento, quer para trazer castigo de condenação e destruição a pecadores empedernidos, nenhum de nós pode acusar a Deus de fazer o mal. No final, todos trabalharão segundo os desígnios de Deus para dar-lhe glória e trazer bem ao seu povo. Todavia, precisamos nos dar conta de que, castigando o mal naqueles que não se redimiram (como o faraó, os cananeus e os babilônios), Deus é também glorificado pela demonstração da sua justiça, santidade e poder (ver Ex 9.16; Rm 9.14-24).

Por intermédio do profeta Isaías, diz Deus: “Eu formo a luz e crio as trevas: faço paz e crio o mal: eu, o SENHOR, faço todas essas coisas” (Is 45.7; a palavra hebraica que exprime “criar” aqui é bãrã a mesma palavra usada em Gn 1.1). Em Lamentações de Jeremias 3.38 lemos: “Acaso, não procede do Altíssimo tanto o mal como o bem?”. O povo de Israel, numa hora de sentido arrependimento, clama a Deus e diz: “O SENHOR, por que nos fazes desviar dos teus caminhos? Por que endureces o nosso coração, para que te não temamos” (Is 63.17).

A vida de Jonas é um exemplo notável da cooperação de Deus na atividade humana. Os homens a bordo do navio que rumava para Társis lançaram Jonas ao mar, pois dizem as Escrituras: “E levantaram a Jonas e o lançaram ao mar; e cessou o mar da sua fúria” (Jn 1.15). Porém já cinco versículos adiante Jonas reconhece a providencial orientação divina no ato dos marinheiros, pois diz a Deus: “Pois [tu] lançaste no profundo, no coração dos mares” (Jn 2.3). As Escrituras simultaneamente afirmam que os marinheiros lançaram Jonas ao mar e que Deus o lançou ao mar. A orientação providencial de Deus não forçou os marinheiros a fazer algo contra a vontade deles, nem estavam eles cônscios de alguma influência divina em si mesmos — na verdade, clamaram ao SENHOR por perdão enquanto atiravam Jonas ao mar (Jn 1.14). O que as Escrituras nos revelam, e o que o próprio Jonas percebeu, foi que Deus estava realizando os seus planos por meio das decisões voluntárias de homens moralmente responsáveis pelas suas ações. De uma maneira que não compreendemos, e a nós não revelada, Deus os fez tomar a decisão voluntária de fazer o que fizeram.

O ato que representa o auge do mal em toda a história, a crucificação de Cristo, foi ordenado por Deus — não só que o fato ocorreria, mas também os atos de indivíduos associados a ele. A igreja de Jerusalém reconheceu isso, pois orou:

...porque verdadeiramente se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo Servo Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e gente de Israel, para fazerem tudo o que a tua mão e o teu propósito predeterminaram (At 4.27-28).

Todas as ações de todos os participantes da crucificação de Jesus foram “predeterminadas” por Deus. No entanto os apóstolos nitidamente não atribuem a Deus nenhuma culpa moral, pois as ações resultaram de decisões voluntárias de pecadores. Pedro deixa isso claro no seu sermão no Pentecostes: “... sendo este [Jesus] entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o por mão de iníquos” At 2.23). Num só período ele liga o desígnio e a presciência de Deus à culpa moral atribuída aos atos dos “iníquos”. Eles não foram obrigados por Deus a agir contra a sua vontade; antes, Deus realizou o seu plano por intermédio das suas decisões voluntárias, pelas quais eram assim mesmo responsáveis.

Num exemplo semelhante ao relato do Antigo Testamento em que Deus envia um espírito mentiroso à boca dos profetas de Acabe, lemos sobre aqueles que se recusam a Á amar a verdade: “E por este motivo, pois, que Deus lhes manda a operação do erro, para darem crédito à mentira, a fIm de serem julgados todos quantos não deram crédito à verdade; antes, pelo contrário, deleitaram-se com a injustiça” (2Ts 2.11-12). E Pedro diz aos seus leitores que aqueles que se opõem a eles e os perseguem, que rejeitam a Crista como Messias, “tropeçam na palavra, sendo desobedientes, para o que também foram postos” (1Pe 2.8).

8. Análise dos versículos relacionados a Deus e o mal. Depois de examinar tantos versículos que falam do uso divino providencial dos atos maus de homens e demônios, que podemos dizer à guisa de análise?

a. Deus usa todas as coisas para cumprir os seus desígnios e usa até o mal para a sua glória e para o nosso bem. Assim, quando o mal entra em nossa vida para nos perturbar, podemos encontrar na doutrina da providência uma certeza mais profunda de que “Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam, dos que foram chamados de acordo com o seu propósito” (Rm 8.28 NVI). Foi essa convicção que possibilitou que José dissesse aos seus irmãos: “Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem”(Gn 50.20).

Também podemos perceber que Deus é glorificado mesmo na punição do mal. Dizem-nos as Escrituras que “o SENHOR fez todas as coisas para determinados fins e até o perverso, para o dia da calamidade” (Pv 16.4). Do mesmo modo, afirma o salmista: “Pois até a ira humana há de louvar-te” (Sl 76.10). E o caso do faraó (Rm 9.14-24) é um claro exemplo do modo como Deus usa o mal para a sua glória e para o bem do seu povo.

b. Porém, Deus jamais faz o mal e jamais deve ser culpado pelo mal. Numa declaração semelhante àquelas citadas acima de Atos 2.23 e 4.27-28, Jesus também combina a predestinação divina da crucificação com a culpa moral daqueles que a executaram: “Porque o Filho do Homem, na verdade, vai segundo o que está determinado, mas ai daquele por intermédio de quem ele está sendo traído!” (Lc 22.22; cf. Mt 26.24; Mc 14.21). E numa declaração mais geral sobre o mal no mundo, diz Jesus: “Ai do mundo, por causa dos escândalos; porque é inevitável que venham escândalos, mas ai do homem pelo qual vem o escândalo!” (Mt 18.7).

Tiago, do mesmo modo, nos exorta a não culpar a Deus pelo mal que fazemos:

“Ninguém, ao ser tentado, diga: sou tentado por Deus; porque Deus não pode ser tentado pelo mal e ele mesmo a ninguém tenta. Ao contrário, cada um é tentado pela sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz” (Tg 1.13-14). O versículo não afirma que Deus jamais provoca o mal; afirma, sim, que jamais devemos concebê-lo como o agente pessoal que nos tenta, ou que deve ser responsabilizado pela tentação.Jamais podemos culpar a Deus pela tentação, nem pensar que ele nos irá aprovar se a ela cedermos. Devemos resistir ao mal e sempre culpar a nós mesmos, ou a outros que nos tentem, mas jamais a Deus. Mesmo um versículo como Isaías 45.7, que fala que Deus “cria o mal”, não diz que é o próprio Deus quem faz o mal, mas deve ser interpretado assim: Deus ordena que o mal se realize por intermédio das decisões voluntárias das suas criaturas.

Esses versículos deixam claro que as “causas secundárias” (homens, anjos e demônios) são reais, e que os homens realmente causam o mal e são responsáveis por ele. Embora Deus tenha ordenado que ele se realizasse, tanto em termos genéricos como nos detalhes específicos, Deus está longe de realmente fazer o mal, e o fato de ele provocá-lo por intermédio de “causas secundárias” não macula a sua santidade nem o faz culpável. Sabiamente, diz João Calvino:

Ladrões, assassinos e outros malfeitores são os instrumentos da providência divina, e o próprio Senhor os usa para executar os juízos que ele determinou consigo. Porém, nego que possamos deduzir disso qualquer desculpa para ps seus atos maus. Por quê? Acaso eles envolverão consigo a Deus na mesma iniqüidade, ou revestirão com a justiça divina a sua depravação? Não podem fazer nem uma coisa nem outra.

Pouco adiante, Calvino intitula assim um capítulo: “Deus tanto usa as obras dos ímpios, e tanto desvia os pensamentos deles para executar os seus juízos, que permanece puro de todo mácula”.’

Importa notar que não há alternativas desejáveis a dizer que Deus usa o mal para os seus desígnios, mas que jamais faz o mal e não deve ser culpado por ele. Se disséssemos que o próprio Deus perpetra o mal, teríamos de concluir que ele não é um Deus bom e justo, e, portanto que não é de fato Deus. Por outro lado, se declarássemos que Deus não usa o mal para cumprir os seus desígnios, então teríamos de admitir que no universo há males que Deus não queria que houvesse, que não estão sob seu controle e que talvez não cumpram os seus desígnios. Diante disso, seria muito difícil afirmar que “todas as coisas” cooperam para o bem daqueles que amam a Deus e que são chamados segundo o seu propósito (Rm 8.28). Se o mal entra no mundo sem que Deus o planeje nem queira vê-lo ali, então que garantia temos de que não haverá cada vez mais males que ele não planeja nem quer? E que garantia temos de que ele será capaz de usá-lo para os seus desígnios, ou mesmo de que ele pode vencê-lo? Certamente essa é uma alternativa indesejável.

c. Deus culpa e julga justamente as criaturas morais pelo mal que fazem. Muitas passagens das Escrituras afirmam isso. Uma delas se encontra em Isaias: “Estes escolheram os seus próprios caminhos, e a sua alma se deleita nas suas abominações, assim eu lhes escolherei o infortúnio e farei vir sobre eles o que eles temem; porque clamei, e ninguém respondeu, falei, e não escutaram; mas fizeram o que era mau perante mim e escolheram aquilo em que eu não tinha prazer” (Is 66.3-4). Do mesmo modo, lemos: “Deus fez o homem reto, mas ele se meteu em muitas astúcias” (Ec 7.29). Á culpa pelo mal é sempre da criatura responsável que o comete, seja homem, seja demônio, e a criatura que comete o mal sempre merece castigo. As Escrituras afirmam repetidamente que Deus é reto e justo para aos castigar pelos nossos pecados. E caso objetemos que ele não deveria encontrar falta mi nós, pois não podemos resistir à. sua vontade, então precisamos ponderar a resposta do próprio apóstolo Paulo a essa questão: “Tu, porém, me dirás: De que se queixa Ele ainda? Pois quem jamais resistiu à sua vontade? Quem és tu, ó homem, para discutir com Deus?! Porventura, pode o objeto perguntar a quem o fez Por que me fizeste assim (Rm 9.19-20). Em todas as ocasiões em que fazemos o mal, sabemos que voluntariamente - decidimos fazê-lo e percebemos que é com justiça que devemos ser culpados por isso.

d. O mal é real, não ilusão, e jamais devemos fazer o mal, pois ele sempre prejudicará a nós mesmos e os outros. As Escrituras ensinam repetidamente que jamais temos o direito de fazer o mal e que persistentemente devemos nos opor a ele em mesmos e no mundo. Devemos orar: “Livra-nos do mal” (Mt 6.13). E quando virmos alguém se desviando da verdade e fazendo algo errado, devemos tentar trazê-lo de volta. Dizem as Escrituras: “Se algum entre vós se desviar da verdade, e alguém o converter sabei que aquele que converte o pecador do seu caminho errado salvará da morte a alua dele e cobrirá multidão de pecados” (Tg 5.19-20). Jamais devemos nem sequer desejar mal, pois abrigar desejos pecaminosos na mente é permitir que eles “façam guerra” contra a nossa alma (1Pe 2.11) e, portanto que nos causem prejuízo espiritual. Quando foram tentados a dizer “Por que não fazer o mal para que venha o bem?”, como algum caluniosamente acusam Paulo de pregar, devemos lembrar que Paulo, sobre os ensinam essa falsa doutrina, afirma: “A condenação destes é justa” (Rm 3.8).

Ao refletir sobre o fato de Deus usar o mal para cumprir os seus desígnios, devemos lembrar que para Deus é justo fazer determinadas coisas, mas errado para nós: ele exige que os outros o adorem, e aceita deles a adoração. Busca a glória para si. Executará o juízo final dos malfeitores. Também usa o mal para bons fins, mas não nos permite fazê-1o Calvino cita com aprovação uma declaração de Agostinho: “Há uma grande diferença entre o que é adequado que o homem deseje e o que é adequado a Deus [...] Pois por intermédio dos maus desejos dos iníquos Deus realiza o que justamente deseja”. E Herman Bavinck usa a analogia de um pai que usa uma faca bem afiada, mas não permite que seu filho a use, para mostrar que Deus usa o mal para bons fins, mas jamais permite que seus filhos façam. Embora devamos imitar o caráter moral de Deus de muitas maneiras (cf. Ef 5.1), essa é uma das maneiras em que não devemos imitá-lo.

e. Apesar de todas as afirmações anteriores, chega um ponto em que nos vemos obrigados a confessar que não compreendemos como Deus pode ordenar que executemos atos maus e depois nos responsabilizar por eles, sem que o próprio Deus tenha culpa. Podemos afirmar que todas essas coisas são verdade, pois as Escrituras as ensinam. Mas a Bíblia não nos diz exatamente como Deus provoca essa situação, ou como Deus nos responsabiliza por aquilo que ordena que venha a acontecer. Nesse ponto a Bíblia se cala, e temos de concordar com Berkhof, considerando que em última análise “o problema da relação de Deus com o pecado permanece um mistério”.’

9. Somos “livres”? Temos “livre-arbítrio”? Se Deus exerce controle providencial sobre todos os eventos, será que em algum sentido somos livres? A resposta depende do que queremos dizer com a palavra livre. Em certos sentidos da palavra, todos concordam que somos livres na nossa vontade e nas nossas decisões. Com isso concordam até teólogos de renome dentro da tradição reformada ou calvinista. Tanto Louis Berkhof, em Teologia Sistemática, quanto João Calvino, em Institutas ou Tratado da Religião Cristã, aceitam falar em certo sentido em atos e escolhas “livres” do homem. Todavia, Calvino explica que o termo está tão sujeito a interpretações equivocadas que ele mesmo procura evitar seu uso, porque “o livre-arbítrio não é suficiente para permitir que o homem faça boas obras, a menos que seja auxiliado pela graça”.’ Portanto, conclui Calvino:

Então devemos considerar de fato que o homem tem essa espécie de livre decisão, não porque tenha livre escolha igualmente do bem e do mal, mas porque age impiamente segundo a sua vontade, não por compulsão. Excelente definição, de fato, mas por que dar nome tão altivo a coisa tão ínfima?

Calvino prossegue explicando como esse termo pode ser facilmente mal compreendido:

Mas, pergunto, quão poucos não são os que, ouvindo falar de livre-arbítrio como atributo do homem, não o concebem imediatamente senhor da sua própria mente e vontade, capaz por conta própria de inclinar-se quer ao bem quer ao mal. [ Se alguém, então, consegue usar essa palavra sem interpretá-la equivocadamente, não o incomodarei por conta disso E...] quanto a mim, prefiro não usá-la, e gostaria que outros, os que buscam o meu conselho, a evitem.

Assim, quando perguntamos se temos “livre-arbítrio”, é importante esclarecer o que palavra significa. As Escrituras em lugar nenhum dizem que somos “livres” no sentido de estar além do controle de Deus ou de ser capazes de tomar decisões não provocadas por algo. (E nesse sentido que muita gente parece supor que somos necessariamente livres;) Tampouco dizem que somos “livres” no sentido de ser capazes de agir retamente por contra própria, sem auxilio do poder divino. No entanto somos livres LO mais sublime sentido em que qualquer criatura de Deus poderia ser livre — fazemos escolhas voluntárias, escolhas que provocam resultados reais. Não temos consciência de nenhuma limitação divina à nossa vontade quando tomamos decisões. Precisamos insistir na idéia de que temos a capacidade da escolha voluntária; senão caímos no erro do fatalismo ou do determinismo, concluindo assim que nossas decisões não têm relevância, ou que não podemos na verdade fazer escolhas voluntárias. Por outro lado, tipo de liberdade exigida por aqueles que negam o controle divino providencial de todas as coisas, liberdade alheia à atividade sustentadora e controladora de Deus, é impossível e Jesus Cristo de fato está “continuamente carregando consigo as coisas pela sua palavra de poder” (Hb 1.3, tradução do autor). Se isso é verdade, então estar além desse controle providencial seria simplesmente não existir! Uma “liberdade” absoluta, totalmente livre do controle de Deus, é simplesmente impossível num mundo providencialmente sustentado e dirigido pelo próprio Deus.



Fonte: Grundem, Wayne, Teologia Sistemática, Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, São Paulo- SP pp 254 - 261

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