terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

O Mal e o Mundo de Deus: Um Problema Especial



A natureza do problema

Tipos de soluções

Temas para lidar com o problema do mal

O mal como efeito secundário necessário da criação da humanidade

Uma reavaliaçâo do que constitui o bem e o mal

O mal em geral como conseqüência do pecado em geral

O mal específico como conseqüência de pecados específicos

Deus como a vítima do mal

A vida futura

A natureza do problema

Tratamos da natureza da providência divina e observamos que ela é universal: Deus controla tudo o que ocorre. Ele possui um plano para o universo inteiro e para todo o tempo, e está agindo para executar um bom piano. Mas uma sombra recai sobre essa doutrina confortante: o problema do mal.

O problema pode ser enunciado de modo simples ou mais complexo. David Hume enunciou de forma sucinta ao escrever sobre Deus: “Ele deseja prevenir o mal, mas não consegue? então é impotente. Ele consegue, mas não quer? então é male volente. Ele é capaz e também quer; de onde, então, vem o mal?” Pode-se também considerar que a existência do mal apresenta um problema para a oração que muitas crianças aprenderam a fazer antes das refeições: “Deus é grande, Deus é bom. Vamos lhe agradecer pelo alimento”. Pois, se Deus é grande, ele pode evitar que o mal ocorra. Se Deus é bom, ele não deve desejar que o mal ocorra. Mas há muitos males que se evidenciam à nossa volta. O problema do mal, portanto, pode ser entendido como um conflito que envolve três conceitos: o poder de Deus, a bondade de Deus e a presença do mal no mundo. O senso comum parece nos dizer que os três não podem ser verdade.

Há dois tipos gerais de males que fazem precipitar esse dilema. Por um lado, há o que costuma ser denominado mal natural. Esse é o mal que não envolve a vontade e a ação humana, sendo um simples aspecto da natureza que parece agir contra o bem-estar dos homens. As forças destrutivas da natureza incluem furacões, terremotos, tornados e o sofrimento e a perda de vidas humanas causados por doenças tais como o câncer, a fibrose cística e a esclerose múltipla. O outro tipo de mal é denominado mal moral. Esses são os males que podem ser atribuídos à escolha e à ação de agentes morais livres. Aqui encontramos guerra, crime, crueldade, luta, discriminação, escravidão e injustiças por demais numerosas para serem mencionadas. Embora os males morais possam ser até certo ponto excluídos de nossa consideração, caso os atribuamos ao livre arbítrio humano, os males naturais não podem ficar fora de nossa consideração.

O problema do mal assume diferentes formas. Em geral, a forma religiosa do problema do mal ocorre quando algum aspecto especifico da experiência do indivíduo o faz questionar a grandeza ou a bondade de Deus, e, portanto, ameaça o relacionamento entre o crente e Deus. A forma teológica do problema preocupa-se com o mal em geral. O problema não está em descobrir como determinada situação concreta pode existir tendo em vista o fato de Deus ser quem é e o que é, mas no motivo pelo qual tal problema pode exístir. E importante observar essas distinções, pois, como destacou Alvin Plantinga, a pessoa a quem um mal específico esteja apresentando uma dificuldade religiosa pode precisar maís de cuidado pastoral que de ajuda para resolver problemas intelectuais. De modo semelhante, tratar um conflito genuinamente intelectual como uma simples questão de sentimentos não ajudará muito. A falha no reconhecimento da modalidade religiosa do problema do mal parecerá insensibilidade; a falha no tratamento da modalidade teológica parecerá um insulto intelectual. Especialmente quando as duas formas aparecem juntas, é importante reconhecer e distinguir os respectivos componentes.

Tipos de soluções

Tem havido muitos tipos diferentes de teodicéias, ou seja, tentativas de mostrar que Deus não é responsável pelo mal. Na maioria dos casos (nossa análise aqui é um tanto supersimplificada) essas tentativas de solução trabalham reduzindo a tensão, modificando um ou mais dos três elementos que, combinados, causam o dilema: a grandeza de Deus, sua bondade e a presença do mal.

Um modo de resolver a tensão do problema que estamos descrevendo é abandonar a idéia da onipotência de Deus. Essa concepção, chamada finitismo, é muitas vezes encontrada em dualismos tais como o zoroastrismo ou o maniqueísmo. Esses dualismos Deus e o poder do mal. Deus esta tentando vencer o mal e o venceria se pudesse, mas não é capaz fazê-lo

Um segundo modo de diminuir a tensão do problema e modificar a idéia da bondade de Deus. Poucos (ou nenhum) dos que se consideram cristãos negariam a bondade de Deus, mas há os que, pelo menos por implicação, insinuam que a bondade deve ser entendida de forma levemente diferente do que se costuma. Um dos que entram nessa categoria é Gordon H. Clark.

Calvinista dedicado, Clark não hesita em usar o termo determinismo para descrever Deus causando todas as coisas, inclusive os atos humanos. Com respeito à relação entre Deus e algumas ações más dos seres humanos, ele chega a afirmar:

“Quero afirmar muito franca e incisivamente que se uma pessoa fica bêbada e atira na família, era vontade de Deus que ela o fizesse”. Já que Deus é a única causa primeira de todas as coisas e tudo o que Deus causa é bom, Clark conclui que é bom e correto que Deus (em última análise) provoque tais atos maus como o bêbado atirando na família, embora Deus não peque e não seja responsável por esse ato pecaminoso. É claro que, nessa solução do problema do mal, o termo bondade passa por uma transformação tal que se torna bem diferente do que em geral se entende por bondade de Deus.

Uma terceira solução proposta para o problema do mal rejeita o mal, tornando desnecessária toda justificativa de sua coexistência com um Deus onipotente e bom. Encontramos essa idéia em várias formas de panteíesmo. A filosofia do Benedictus Spinoza, por exemplo, sustenta que existe apenas uma substância, e todas as coisas discerníveis são modos ou atributos dessa substância. Tudo é causado de uma forma determinista; Deus traz todas as coisas à existência na mais alta perfeição. Uma versão mais popular, mas consideravelmente menos elaborada, dessa solução para o problema do mal é encontrada na Ciência Cristã, que afirma que o mal em geral e, em particular, a doença, é uma ilusão; ele não é real.

Temas para lidar com o problema do mal

Uma solução completa do problema está além da capacidade humana. Portanto, o que faremos aqui é a alguns temas que, combinados, irão nos ajudar a lidar com o problema. Esses temas serão coerentes com as doutrinas básicas da teologia expostas neste escrito. Essa teologia pode ser caracterizada como um calvinismo suave que dá lugar central à soberania de Deus, ao mesmo tempo em que procura relacioná-la de forma positiva com a liberdade e a individualidade humana. Essa teologia é um dualismo em que o segundo elemento depende do primeiro ou dele deriva. Ou seja, há realidades à parte de Deus que possuem existência própria, genuína e boa, mas que, em última análise, dele receberam a existência por criação (não emanação). Essa teologia também afirma o pecado e a queda da raça humana e a conseqüente pecaminosidade de cada ser humano; a realidade do mal e dos seres demoníacos pessoais encabeçados pelo diabo; a encarnação da Segunda Pessoa do Deus Triúno, que se tornou uma expiação sacrifical pelos pecados da humanidade; e uma vida eterna além da morte. É no contexto dessa estrutura teológica que os seguintes temas são apresentados como recursos que ajudam a lidar com o problema do mal:

O mal como efeito secundário necessário da criação da humanidade

Há coisas que Deus não pode fazer. Deus não pode ser cruel, pois a crueldade é contrária à sua natureza. Ele não pode mentir. Ele não pode quebrar suas promessas. Há algumas outras coisas que Deus não pode fazer sem algumas conseqüências inevitáveis. Por exemplo, Deus não pode fazer um círculo, um verdadeiro círculo, sem que todos os pontos da circunferência sejam eqüidistantes do centro. De modo semelhante, Deus não pode fazer um homem sem certas características que lhe são próprias.

Os homens não seriam humanos se não possuíssem livre arbítrio. Quer os homens sejam livres no sentido assumido pelos arminianos, quer sejam livres em um sentido que não seja incoerente com a idéia de que Deus determinou o que irá acontecer, o fato de que Deus fez os homens segundo seu propósito significa que temos certas capacidades (e.g., as capacidades de desejar e de agir) que não poderíamos exercer plenamente caso não houvesse algo como o mal. Se Deus tivesse evitado o mal, teria de nos fazer diferentes do que somos. Para sermos realmente humanos, precisamos ter a capacidade de desejar ter e fazer coisas das quais algumas não serão as que Deus deseja que tenhamos ou façamos. O mal, portanto, era um complemento necessário do bom plano de Deus para nos fazer plenamente humanos.

Outra dimensão desse tema é que para Deus fazer o mundo material tal como é, exigem-se certos elementos concomitantes. Aparentemente, para que os humanos tivessem uma escolha moral genuína, com a possibffidade de uma punição genuína para a desobediência, era preciso que fossem passíveis de morte. Além disso, a manutenção da vida exigia condições que poderiam levar, alternativamente, à morte. Assim, por exemplo, precisamos de água para viver. Mas a mesma água que bebemos pode, em outras circunstâncias, entrar em nossos pulmões, cortando nosso suprimento de oxigênio e deixando-nos, desse modo, sufocados. A água que é necessária para manter a vida também pode cortá-la.

Embora uma solução completa do problema do mal esteja além da capacidade humana, o mal pode ser um complemento necessário do plano de Deus para nos fazer plenamente humanos ou o meio para um bem maior.

Neste ponto alguém pode levantar a pergunta: “Se Deus não podia criar o mundo sem a possibilidade concomitante do mal, por que ele criou assim mesmo, ou por que ele não criou o mundo sem os homens?” Em certo sentido, não podemos responder essa pergunta porque não somos Deus, mas cabe notar aqui que Deus escolheu o maior bem. Ele preferiu criar a não criar, e criar seres humanos a algo inferior. Decidiu criar seres que teriam comunhão com ele e lhe obedeceriam, seres que escolheriam fazer isso, mesmo sob a tentação de agir de outra maneira. Isso, evidentemente, era um bem maior que introduzir a “humanidade” num ambiente totalmente anti-séptico, do qual até a possibilidade lógica de desejar algo contrário à vontade de Deus estaria excluída.

Uma reavaliação do que constitui o bem e o mal

Parte do que consideramos bem e mal pode não o ser na realidade. É, portanto, necessário examinar com muito cuidado o que constitui o bem e o mal.

Em primeiro lugar, precisamos considerar a dimensão divina. O bem não deve ser definido de acordo com o que traz prazer pessoal para os homens de forma direta. O bem deve ser definido em relação com a vontade e a natureza de Deus, O bem é o que o glorifica, cumpre sua vontade, está de acordo com sua natureza. A promessa de Romanos 8.28 é às vezes citada de forma um tanto impensada pelos cristãos: “Sabemos que todas as cousas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito”. Mas que bem é esse? Paulo nos responde no versículo 29: “Porquanto aos que de antemão conheceu, também predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos”. Isto, portanto, é o bem: não a riqueza ou a saúde pessoal, mas ser conforme a imagem do Filho de Deus. Não é o conforto a curto prazo, mas o bem-estar a longo prazo para a humanidade, segundo o que é determinado pelo conhecimento e pela sabedoria de Deus.

Em segundo lugar, precisamos considerar a dimensão do tempo ou a duração. Alguns dos males que experimentamos são na realidade muito perturbadores a curto prazo, mas, numa obra de longo prazo, um bem muito maior. A dor da broca do dentista e o sofrimento da recuperação pós-operatória parecem males muito severos, mas, na realidade, são muito pequenos em relação às conseqüências que, a longo prazo, decorrem deles. As Escrituras nos encorajam a avaliar nosso sofri mento temporário em relação à eternidade. Paulo disse: “tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser comparados com a glória a ser a revelada em nós” (Rm 8.18; veja também 2Co 4.17; Hb 12.2; lPe 1.6,7). Os problemas ficam muitas vezes aumentados por estarem muito próximos de nós no momento, de modo que se tornam desproporcionais em relação a outros assuntos d pertinentes. Uma boa pergunta para fazer diante de qualquer mal aparente é: “Qual a importância que isso terá para mim daqui um ano? cinco anos? um milhão P de anos?

Em terceiro lugar, há o problema da extensão do mal. Temos a tendência de ser muito individualistas em nossa avaliação do bem e do mal. Mas este mundo é grande e complexo, e Deus tem muitas pessoas de quem cuidar. A chuva de sábado que estraga o piquenique da família ou uma partida de golfe pode me parecer um mal, mas ser um bem muito maior para os agricultores cujas terras ressecadas circundam o campo de golfe ou o parque, e, no final, para um número muito maior de pessoas que dependem das colheitas dos agricultores, dos preços que serão afetados pela abundância ou escassez de oferta.

Parte do que estamos dizendo aqui é que o que parece ser um mal pode ser em C alguns casos, na realidade, o meio para um bem maior. Embora talvez não compreendamos, os planos e as ações de Deus não se tornam bons de acordo com as conseqüências. Antes, o que faz com que os planos e as ações de Deus sejam bons é o fato de que ele os desejou.

O mal em geral como conseqüência do pecado em geral

Uma doutrina fundamental da teologia que está sendo desenvolvida neste livro é o fato do pecado racial. Não estamos, com isso, falando do pecado de uma raça contra outra, mas do fato de que toda a raça humana pecou, sendo agora pecadora. Por meio de sua cabeça, Adão, toda a raça humana violou a vontade de Deus e caiu do estado de inocência em que Deus havia criado a humanidade. Por conseguinte, todos nós começamos a vida com uma tendência natural para o pecado. A Bíblia nos diz que, com a queda, o primeiro pecado da humanidade, houve uma mudança radical no universo. A morte atingiu a humanidade (Gn 2.17; 3.2,3, 19). Deus pronunciou contra ela uma maldição que é representada por certos fatores específicos: dores de parto (3.16), dominação do homem sobre a esposa (v. 16), trabalho pesado (v. 17), cardos e abrolhos (v. 18). Parece que esses itens são apenas exemplos dos verdadeiros efeitos sobre a criação. Paulo, em Romanos 8, afirma que toda a criação foi afetada pelo pecado da humanidade, estando agora escravizada à corrupção. Ela aguarda sua redenção dessa escravidão. Portanto, parece provável que toda a hoste de males naturais também pode ter resultado do pecado da humanidade.

Mais sério e mais óbvio, entretanto, é o efeito da queda na promoção do mal moral, ou seja, o mal relacionado com a vontade e a ação humana. Não há dúvida de que boa parte do sofrimento e da infelicidade dos seres humanos é uma conseqüência do mal estrutural na sociedade. Por exemplo, o poder pode residir nas mãos de uns poucos que o usam para explorar outros. O egoísmo numa escala coletiva pode manter certa classe social ou algum grupo racial em condições dolorosas ou precárias.

Há uma pergunta importante que deve ser feita aqui: como pode ter surgido o primeiro pecado? Parte da resposta é que os homens devem ter uma opção para serem genuinamente livres. A escolha é obedecer ou desobedecer a Deus. No caso de Adão e Eva, a árvore do conhecimento do bem e do mal simbolizava tal escolha (Gn 2.17). Quando desobedeceram a Deus, o relacionamento que tinham com ele ficou distorcido, e o pecado tomou-se uma realidade. Os homens têm sido grande- mente afetados pelo pecado: atitudes, valores e relacionamentos foram mudados. No caso de Adão e Eva, essa mudança refletiu-se em sua nova consciência da nudez, no medo de Deus e na falta de disposição para aceitar a responsabilidade pelo pecado.

Está claro, portanto, que Deus não criou o pecado. Ele apenas providenciou as opções necessárias para que o homem fosse livre, opções que poderiam resultar em pecado. Foram os homens que pecaram, não Deus.

O mal específico como conseqüência de pecados específicos

Alguns males específicos são conseqüência de pecados ou, pelo menos, imprudências específicas. Algumas das ocorrências más na vida são causadas pelos atos pecaminosos de outras pessoas. Homicídio, abuso de crianças, roubo e estupro são males ligados ao exercício de escolhas pecaminosas por parte de indivíduos pecadores. Em alguns casos, a vítima é inocente do mal que ocorre. Em outros casos, porém, a “vítima” contribui para que ocorra o ato mau ou o provoca.

Em um considerável número de casos, trazemos o mal sobre nós mesmos por meio de nossas ações pecaminosas ou insensatas. Precisamos de muito cuidado neste ponto. Os amigos de Jó estavam inclinados a atribuir suas agruras apenas a seus pecados (e.g. Jó 22). Mas Jesus indicou que a tragédia nem sempre é conseqüência de um pecado especifico. Quando seus discípulos perguntaram a respeito do homem que havia nascido cego: “Mestre, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?” Jesus respondeu: “Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi para que se manifestem nele as obras de Deus” (lo 9.2,3). Jesus não estava dizendo que o homem e seus pais não haviam pecado; antes, estava refutando a idéia de que a cegueira era conseqüência de um pecado especifico. É insensatez es atribuir automaticamente os infortúnios da pessoa ao seu pecado.

Mas depois dessa advertência, precisamos observar que há casos de pecado que resultam em infortúnios sobre o indivíduo pecador. Um exemplo é Davi, cujo pecado com Bate-Seba e assassínio de Urias resultaram na morte do filho de Davi e Bate-Seba, bem como em conflitos na própria família de Davi. Talvez isso deva ser visto mais como efeitos de certos atos que punição de Deus. Não sabemos o fatores envolvidos, mas bem pode ser que certas condições presentes no momento do adultério tenham resultado num defeito genético na criança. E o sentimento de pr culpa de Davi pode tê-lo tornado indulgente com os filhos, coisa que, por sua vez, ha levou-os a pecar. Boa parte do mal relatado nas Escrituras sobreveio às pessoas em tai decorrência de seu próprio pecado, ou do pecado de alguém próximo a elas. se

Paulo disse: “Não vos enganeis: de Deus não se zomba; pois aquilo que o ti\ homem semear, isso também ceifará. Porque o que semeia para a sua própria carne re da carne colherá corrupção; mas o que semeia para o Espírito do Espírito colherá PC vida eterna” (Gl 6.7,8). Embora seja provável que Paulo estivesse pensando primeiramente na dimensão eterna das conseqüências do pecado, o contexto (a parte inicial do cap. 6) parece indicar que ele também tinha em mente os efeitos temporais. Quem quer que viole as leis contra o adultério (Ex 20.14) pode descobrir que o resultado é a destruição das relações de confiança, não apenas com o cônjuge, mas também com os filhos. Quem se embebeda habitualmente bem pode destruir a saúde, conseguindo uma cirrose hepática. Deus não o está atacando; antes, o pecado do bêbado faz surgir a doença. Isso não quer dizer, porém, que Deus não pode usar as conseqüências naturais do pecado para disciplinar as pessoas.

Deus como a vítima do mal

A idéia de que Deus assumiu sobre si mesmo o pecado e seus efeitos maus é uma contribuição sem igual da doutrina cristã para resolver o problema do pecado. É notável que, apesar de saber que ele mesmo seria a vítima (aliás, a maior vítima) do mal que resultaria do pecado, Deus permitiu que o pecado ocorresse. A Bíblia nos diz que Deus ficou afligido pelo pecado da humanidade (Gn 6.6). Embora certamente haja um antropomorfismo aqui, ainda indica que o pecado da humanidade é doloroso ou prejudicial para Deus. Ainda mais preciso é o fato da encarnação. O Deus Triúno sabia que a Segunda Pessoa viria à terra e ficaria sujeito a inúmeros males: fome, fadiga, traição, ridículo, rejeição, sofrimento e morte. Ele fez isso para anular o pecado e, com isso, seus efeitos malignos. Deus é nosso companheiro de sofrimentos nos males deste mundo, e, por conseguinte, é capaz de nos livrar do mal. Como é grande esse amor! Qualquer um que deseje impugnar a bondade de Deus por permitir o pecado e, conseqüentemente, o mal, deve medir essa acusação de acordo com o ensino bíblico de que Deus mesmo se tornou a vítima do mal para que pudéssemos ser vitoriosos sobre o mal.

A vida futura

Não há dúvidas de que nesta vida existem o que parecem exemplos claros de injustiça e sofrimento de inocentes. Se esta vida fosse a única, com certeza o problema do mal seria insolúvel. Mas a doutrina cristã da vida futura ensina que haverá um grande tempo de julgamento — cada pecado será reconhecido e os fiéis também serão revelados. O julgamento será totalmente justo. A punição para o mal será ministrada, e a dimensão final da vida eterna será assegurada para os que tiverem atendido à oferta amorosa de Deus. Assim, a reclamação do salmista a respeito da prosperidade do mau e do sofrimento do justo será satisfeita na vida do porvir.


Fonte: ERICKSON, Millard J., Introdução à Teologia Sistemática, São Paulo, Edições Vida Nova. pp 183 – 191.

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E o Mal?

Por Wayne Grudem

Se Deus de fato causa, mediante a sua ação providencial, tudo o que vem a acontecer no mundo, então surge a pergunta: “Qual a relação entre Deus e o mal que existe no mundo?” Será que Deus realmente causa os atos maus das pessoas? Se o faz, então não seria Deus responsável pelo pecado?

Para tratar dessa questão, melhor é primeiro ler as passagens bíblicas que mais diretamente a abordam. Podemos começar pela análise de várias passagens que afirmam que Deus, de fato, provocou acontecimentos maus e fez que se cometessem atos maus. Mas é importante lembrar que em todas essas passagens fica bem claro que as Escrituras, em momento nenhum, retratam Deus fazendo diretamente algo mau; retratam, sim, Deus causando atos maus por meio das ações voluntárias das criaturas morais. Além disso, as Escrituras jamais culpam a Deus pelo mal nem dão a entender que Deus encontra prazer no mal tampouco desculpam aos homens o mal que cometem. Seja como for que compreendamos a relação de Deus com o mal, jamais devemos chegar ao ponto de não nos julgar responsáveis pelo mal que fazemos, ou de pensar que Deus encontra prazer no mal, ou é culpado dele. Tal conclusão contraria nitidamente as Escrituras.

Existem literalmente dezenas de passagens bíblicas que afirmam que Deus (indiretamente) provocou algum tipo de mal. Cito uma lista bastante extensa (nos próximos parágrafos), porque os cristãos muitas vezes não se dão conta da extensão desse franco ensino bíblico. Porém, devemos lembrar que, em todos esses exemplos, o mal é na verdade cometido não por Deus, mas por pessoas ou demônios que decidiram fazê-lo.

Um exemplo bem claro se encontra na história de José. As Escrituras dizem com grande clareza que os irmãos de José tinham, injustamente, inveja dele (Gn 37.11), que o odiavam (Gn 37.4, 5, 8), que queriam matá-lo (Gn 37.20) e que cometeram um crime jogando-o dentro de uma cisterna (Gn 37.24), vendendo-o depois como escravo aos egípcios (Gn 37.2 8). Porém, mais tarde José pôde dizer aos seus irmãos: “Para conservação da vida, Deus me enviou adiante de vás” (Gn 45.5) e “Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem, para fazer, como vedes agora, que se conserve muita gente em vida” (Gn 50.20). Aqui temos uma combinação de atos maus provocados por homens pecadores, que são justamente responsabilizados pelo seu pecado, e do irresistível controle providencial de Deus, por meio do qual se cumprem os desígnios divinos. Ambos estão claramente afirmados.

O relato do êxodo do Egito afirma repetidamente que Deus endureceu o coração do faraó; Deus diz: “Eu lhe endurecerei o coração” (Ex 4.21), “Endurecerei o coração de Faraó” (Éx 7.3), “O SENHOR endureceu o coração de Faraó” (Êx 9.12), “O SENHOR, porém, endureceu o coração de Faraó” (Ex 10.20, repetido em 10.27 e novamente em 11.10), “Endurecerei o coração de Faraó” (Ex 14.4) e «O SENHOR endureceu o coração de Faraó, rei do Egito” (Ex 14.8). As vezes se contrapõe que a Bíblia também diz que o faraó endureceu o próprio coração (Êx 8.15, 32; 9.34), e que a decisão divina de endurecer o coração do faraó não passou de uma reação à rebeldia inicial e à dureza de coração que o faraó revelara por contra própria. Mas é importante notar que as promessas divinas de endurecer o coração do faraó (Ex 4.21; 7.3) são feitas bem antes de as Escrituras nos dizerem que o faraó endurecera o próprio coração (lemos isso pela primeira vez só em x 8.15). Ademais, a análise da cooperação que fizemos acima, segundo a qual os agentes Divino e humano podem provocar o mesmo evento, deve-nos mostrar que os dois fatores podem ser verdadeiros simultaneamente: mesmo quando o faraó endurece o próprio oração, não é incompatível dizer que Deus induz o faraó a fazê-lo e que, portanto, é Deus quem endurece o coração do faraó. Finalmente, se alguém objetar que Deus está apenas intensificando os maus desejos e decisões que já estavam no coração do faraó, então esse pode ação poderia assim mesmo, teoricamente, explicar todo o mal que há hoje no mundo, pois todas as pessoas têm desejos maus no coração e de fato tomam decisões más.

Qual era o propósito de Deus nisso? Paulo, ponderando Êxodo 9.16, diz: “Porque a Escritura diz a Faraó: Para isto mesmo te levantei, para mostrar em ti o meu poder e para que o meu nome seja anunciado por toda a terra” (Rm 9.17). Depois Paulo infere uma verdade geral desse exemplo específico: “Logo, tem ele misericórdia de quem quer e também endurece a quem lhe apraz” (Rm 9.18). De fato, Deus também endureceu o coração do povo egípcio, para que perseguissem Israel até o mar Vermelho: “Eis que endurecerei coração dos egípcios, para que vos sigam e entrem nele; serei glorificado em Faraó e em todo o seu exército, nos seus carros e nos seus cavalarianos” (Éx 14.17). Esse tema se repete rn Salmos 105.25: “Mudou-lhes o coração para que odiassem o seu povo”.

Mais tarde, ainda na narrativa do Antigo Testamento, encontram-se exemplos semelhantes no caso dos cananeus, destruídos na conquista da Palestina sob o comando Josué. Lemos: “Porquanto do SENHOR vinha o endurecimento do seu coração para irem à guerra contra Israel, a fim de que fossem totalmente destruídos” Os 11.20; ver também Jz 3.12; 9.23). E a obstinação de Sansão em casar-se com uma filistéia descrente vinha do SENHOR; pois este procurava ocasião contra os filisteus; porquanto, naquele tempo, os filisteus dominavam sobre Israel” (Jz 14.4). Também lemos que os filhos de Eli, quando repreendidos pelas suas iniqüidades, “não ouviram a voz de seu pai, porque o NHOR os queria matar” (lSm 2.25). Mais tarde, “da parte deste [ SENHOR] um espírito maligno” atormentava o rei Saul (lSm 16.14).

Quando Davi pecou, o SENHOR lhe disse por intermédio do profeta Natã: “Eis que da tua própria casa suscitarei o mal sobre ti, e tomarei tuas mulheres à tua própria vista, is darei a teu próximo, o qual se deitará com elas, em plena luz deste sol. Porque tu o fizeste em oculto, mas eu farei isto perante todo o Israel e perante o sol” (2Sm 12.11-12; cumprido em 16.22). Ainda como castigo pelo pecado de Davi, “o SENHOR feriu a criança e a mulher de Urias dera à luz a Davi; e a criança adoeceu gravemente” e acabou morrendo (2Sm 12.15-18). Davi permaneceu consciente do fato de que Deus podia suscitar mal contra ele, pois mais tarde, quando Simei amaldiçoou a Davi e atirou pedras contra e seus servos (2Sm 16.5-8), Davi se recusou a vingar-se de Simei, mas disse aos dados: “Deixai-o; que amaldiçoe, pois o SENHOR lhe ordenou” (2Sm 16.11).

Ainda mais tarde, o Senhor incitou Davi a fazer o censo do povo (2Sm 24.1), mas posteriormente Davi reconheceu seu ato como pecado, dizendo: “Muito pequei no que (2Sm 24.10), e Deus castigou a terra por causa desse pecado (2Sm 24.12-17). Porém, é também claro que “a ira do SENHOR [... acendeu-se] contra os israelitas” (2Sm 24.1), e tanto o fato de ter Deus incitado Davi ao pecado foi um meio pelo qual pôde punir o povo de Israel. Além disso, a forma como Deus incitou Davi fica clara em 1Crônicas 21: 1 “Satanás se levantou contra Israel e incitou a Davi a levantar o censo de Israel”. Nesse incidente a Bíblia nos faz uma notável revelação sobre as três influências que contribuíram de modos diferentes para um só ato: Deus, a fim de cumprir os seus desígnios, agiu por intermédio de Satanás para incitar Davi ao pecado, mas as Escrituras responsabilizam Davi pelo pecado. Novamente, depois que Salomão se afastou do Senhor por causa das suas mulheres estrangeiras, “levantou o SENHOR contra Salomão um adversário, Hadade. o edomita” (1Rs 11.14), e “também Deus levantou a Salomão outro adversário, Rezom, filho de Eliada” (lRs 11.23). Esses reis maus foram instigados por Deus.

Na história de Jó, embora o SENHOR tenha dado a Satanás permissão para trazer o mal às posses e aos filhos de Jó, e embora esse mal tenha vindo por meio de atos iníquos dos sabeus e dos caldeus, além de uma ventania (Jó 1.12, 15, 17, 19), assim mesmo Jó enxergou além dessas causas secundárias e, com os olhos da fé, viu tudo como ação da mão do Senhor:. “O SENHOR o deu e O SENHOR o tomou; bendito seja o nome do SENHOR” (Jó 1.21). O autor do Antigo Testamento, logo depois da declaração de Jó, diz o seguinte: “Em tudo isso Jó não pecou, nem atribuiu a Deus falta alguma” (Jó 1.22).Jó acabara de ficar sabendo que bandos de ímpios saqueadores haviam destruído suas ovelhas e seu gado, mas no entanto, com grande fé e paciência em meio à adversidade, diz: “O SENHOR o tomou”. Embora ele diga que o SENHOR fez isso, não culpa a Deus pelo mal nem diz que Deus fez algo de errado, mas exclama: “Bendito seja o nome do SENHOR!” Culpara Deus pelo mal que ele provocara por intermédio de agentes secundários seria pecado.Jó não o faz, as Escrituras jamais o fazem, nem devemos nós fazê-lo.

Em outros trechos do Antigo Testamento lemos que o Senhor “pôs o espírito mentiroso na boca” dos profetas de Acabe (1Rs 22.23) e enviou os ímpios assírios como “cetro da minha ira” para castigar Israel (Is 10.5). Também enviou os iníquos babilônios, inclusive Nabucodonosor, contra Israel, dizendo: “... os trarei contra esta terra, contra os seus moradores” (Jr 25.9). Depois Deus prometeu que, mais tarde, castigaria também os babilônios: “Castigarei a iniqüidade do rei da Babilônia e a desta nação, diz o SENHOR, como também a da terra dos caldeus; farei deles ruínas perpétuas” (Jr 25.12). Se um profeta enganador transmite uma mensagem falsa, diz o Senhor: “Se o profeta for enganado e falar alguma coisa, fui eu, o SENHOR, que enganei esse profeta; estenderei a mão contra ele e o eliminarei do meio do meu povo de Israel” (Ez 14.9, no contexto de castigo de Israel pela sua idolatria). Como culminância de uma série de perguntas retóricas às quais a resposta implícita é sempre “não”, pergunta Amós: “Tocar-se-á a trombeta na cidade, sem que o povo se estremeça? Sucederá algum mal à cidade, sem que o SENHOR o tenha feito?” (Am 3.6). Segue-se uma série de desastres naturais em Amós 4.6-12, em que o SENHOR lembra ao povo que ele lhes mandou a fome, a seca, o crestamento e a ferrugem, os gafanhotos, a peste, a morte dos homens e dos cavalos, “contudo, não vos convertestes a mim” (Am 4.6, 8, 9, 10, 11).

Em muitas passagens mencionadas acima, Deus traz o mal e a destruição ao povo em castigo pelos seus pecados: foram desobedientes ou desencaminharam-se para a idolatria, e assim o SENHOR lança mão de homens maus ou forças demoníacas ou ainda catástrofes “naturais” para castigá-los. (Nem sempre se diz ser esse o caso [basta lembrar José e Jó], mas muitas vezes o é.) Talvez essa idéia de castigo do pecado possa nos ajudar a compreender, pelo menos em parte, como Deus pode, com justiça, provocar acontecimentos danosos. Todos os seres humanos são pecadores, pois as Escrituras nos dizem que “todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3.23). Nenhum de nós merece o favor de Deus nem sua misericórdia, mas só condenação eterna. Portanto, quando Deus impõe o mal aos homens, quer para disciplinar seus filhos, quer para levar os descrentes ao arrependimento, quer para trazer castigo de condenação e destruição a pecadores empedernidos, nenhum de nós pode acusar a Deus de fazer o mal. No final, todos trabalharão segundo os desígnios de Deus para dar-lhe glória e trazer bem ao seu povo. Todavia, precisamos nos dar conta de que, castigando o mal naqueles que não se redimiram (como o faraó, os cananeus e os babilônios), Deus é também glorificado pela demonstração da sua justiça, santidade e poder (ver Ex 9.16; Rm 9.14-24).

Por intermédio do profeta Isaías, diz Deus: “Eu formo a luz e crio as trevas: faço paz e crio o mal: eu, o SENHOR, faço todas essas coisas” (Is 45.7; a palavra hebraica que exprime “criar” aqui é bãrã a mesma palavra usada em Gn 1.1). Em Lamentações de Jeremias 3.38 lemos: “Acaso, não procede do Altíssimo tanto o mal como o bem?”. O povo de Israel, numa hora de sentido arrependimento, clama a Deus e diz: “O SENHOR, por que nos fazes desviar dos teus caminhos? Por que endureces o nosso coração, para que te não temamos” (Is 63.17).

A vida de Jonas é um exemplo notável da cooperação de Deus na atividade humana. Os homens a bordo do navio que rumava para Társis lançaram Jonas ao mar, pois dizem as Escrituras: “E levantaram a Jonas e o lançaram ao mar; e cessou o mar da sua fúria” (Jn 1.15). Porém já cinco versículos adiante Jonas reconhece a providencial orientação divina no ato dos marinheiros, pois diz a Deus: “Pois [tu] lançaste no profundo, no coração dos mares” (Jn 2.3). As Escrituras simultaneamente afirmam que os marinheiros lançaram Jonas ao mar e que Deus o lançou ao mar. A orientação providencial de Deus não forçou os marinheiros a fazer algo contra a vontade deles, nem estavam eles cônscios de alguma influência divina em si mesmos — na verdade, clamaram ao SENHOR por perdão enquanto atiravam Jonas ao mar (Jn 1.14). O que as Escrituras nos revelam, e o que o próprio Jonas percebeu, foi que Deus estava realizando os seus planos por meio das decisões voluntárias de homens moralmente responsáveis pelas suas ações. De uma maneira que não compreendemos, e a nós não revelada, Deus os fez tomar a decisão voluntária de fazer o que fizeram.

O ato que representa o auge do mal em toda a história, a crucificação de Cristo, foi ordenado por Deus — não só que o fato ocorreria, mas também os atos de indivíduos associados a ele. A igreja de Jerusalém reconheceu isso, pois orou:

...porque verdadeiramente se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo Servo Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e gente de Israel, para fazerem tudo o que a tua mão e o teu propósito predeterminaram (At 4.27-28).

Todas as ações de todos os participantes da crucificação de Jesus foram “predeterminadas” por Deus. No entanto os apóstolos nitidamente não atribuem a Deus nenhuma culpa moral, pois as ações resultaram de decisões voluntárias de pecadores. Pedro deixa isso claro no seu sermão no Pentecostes: “... sendo este [Jesus] entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o por mão de iníquos” At 2.23). Num só período ele liga o desígnio e a presciência de Deus à culpa moral atribuída aos atos dos “iníquos”. Eles não foram obrigados por Deus a agir contra a sua vontade; antes, Deus realizou o seu plano por intermédio das suas decisões voluntárias, pelas quais eram assim mesmo responsáveis.

Num exemplo semelhante ao relato do Antigo Testamento em que Deus envia um espírito mentiroso à boca dos profetas de Acabe, lemos sobre aqueles que se recusam a Á amar a verdade: “E por este motivo, pois, que Deus lhes manda a operação do erro, para darem crédito à mentira, a fIm de serem julgados todos quantos não deram crédito à verdade; antes, pelo contrário, deleitaram-se com a injustiça” (2Ts 2.11-12). E Pedro diz aos seus leitores que aqueles que se opõem a eles e os perseguem, que rejeitam a Crista como Messias, “tropeçam na palavra, sendo desobedientes, para o que também foram postos” (1Pe 2.8).

8. Análise dos versículos relacionados a Deus e o mal. Depois de examinar tantos versículos que falam do uso divino providencial dos atos maus de homens e demônios, que podemos dizer à guisa de análise?

a. Deus usa todas as coisas para cumprir os seus desígnios e usa até o mal para a sua glória e para o nosso bem. Assim, quando o mal entra em nossa vida para nos perturbar, podemos encontrar na doutrina da providência uma certeza mais profunda de que “Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam, dos que foram chamados de acordo com o seu propósito” (Rm 8.28 NVI). Foi essa convicção que possibilitou que José dissesse aos seus irmãos: “Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem”(Gn 50.20).

Também podemos perceber que Deus é glorificado mesmo na punição do mal. Dizem-nos as Escrituras que “o SENHOR fez todas as coisas para determinados fins e até o perverso, para o dia da calamidade” (Pv 16.4). Do mesmo modo, afirma o salmista: “Pois até a ira humana há de louvar-te” (Sl 76.10). E o caso do faraó (Rm 9.14-24) é um claro exemplo do modo como Deus usa o mal para a sua glória e para o bem do seu povo.

b. Porém, Deus jamais faz o mal e jamais deve ser culpado pelo mal. Numa declaração semelhante àquelas citadas acima de Atos 2.23 e 4.27-28, Jesus também combina a predestinação divina da crucificação com a culpa moral daqueles que a executaram: “Porque o Filho do Homem, na verdade, vai segundo o que está determinado, mas ai daquele por intermédio de quem ele está sendo traído!” (Lc 22.22; cf. Mt 26.24; Mc 14.21). E numa declaração mais geral sobre o mal no mundo, diz Jesus: “Ai do mundo, por causa dos escândalos; porque é inevitável que venham escândalos, mas ai do homem pelo qual vem o escândalo!” (Mt 18.7).

Tiago, do mesmo modo, nos exorta a não culpar a Deus pelo mal que fazemos:

“Ninguém, ao ser tentado, diga: sou tentado por Deus; porque Deus não pode ser tentado pelo mal e ele mesmo a ninguém tenta. Ao contrário, cada um é tentado pela sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz” (Tg 1.13-14). O versículo não afirma que Deus jamais provoca o mal; afirma, sim, que jamais devemos concebê-lo como o agente pessoal que nos tenta, ou que deve ser responsabilizado pela tentação.Jamais podemos culpar a Deus pela tentação, nem pensar que ele nos irá aprovar se a ela cedermos. Devemos resistir ao mal e sempre culpar a nós mesmos, ou a outros que nos tentem, mas jamais a Deus. Mesmo um versículo como Isaías 45.7, que fala que Deus “cria o mal”, não diz que é o próprio Deus quem faz o mal, mas deve ser interpretado assim: Deus ordena que o mal se realize por intermédio das decisões voluntárias das suas criaturas.

Esses versículos deixam claro que as “causas secundárias” (homens, anjos e demônios) são reais, e que os homens realmente causam o mal e são responsáveis por ele. Embora Deus tenha ordenado que ele se realizasse, tanto em termos genéricos como nos detalhes específicos, Deus está longe de realmente fazer o mal, e o fato de ele provocá-lo por intermédio de “causas secundárias” não macula a sua santidade nem o faz culpável. Sabiamente, diz João Calvino:

Ladrões, assassinos e outros malfeitores são os instrumentos da providência divina, e o próprio Senhor os usa para executar os juízos que ele determinou consigo. Porém, nego que possamos deduzir disso qualquer desculpa para ps seus atos maus. Por quê? Acaso eles envolverão consigo a Deus na mesma iniqüidade, ou revestirão com a justiça divina a sua depravação? Não podem fazer nem uma coisa nem outra.

Pouco adiante, Calvino intitula assim um capítulo: “Deus tanto usa as obras dos ímpios, e tanto desvia os pensamentos deles para executar os seus juízos, que permanece puro de todo mácula”.’

Importa notar que não há alternativas desejáveis a dizer que Deus usa o mal para os seus desígnios, mas que jamais faz o mal e não deve ser culpado por ele. Se disséssemos que o próprio Deus perpetra o mal, teríamos de concluir que ele não é um Deus bom e justo, e, portanto que não é de fato Deus. Por outro lado, se declarássemos que Deus não usa o mal para cumprir os seus desígnios, então teríamos de admitir que no universo há males que Deus não queria que houvesse, que não estão sob seu controle e que talvez não cumpram os seus desígnios. Diante disso, seria muito difícil afirmar que “todas as coisas” cooperam para o bem daqueles que amam a Deus e que são chamados segundo o seu propósito (Rm 8.28). Se o mal entra no mundo sem que Deus o planeje nem queira vê-lo ali, então que garantia temos de que não haverá cada vez mais males que ele não planeja nem quer? E que garantia temos de que ele será capaz de usá-lo para os seus desígnios, ou mesmo de que ele pode vencê-lo? Certamente essa é uma alternativa indesejável.

c. Deus culpa e julga justamente as criaturas morais pelo mal que fazem. Muitas passagens das Escrituras afirmam isso. Uma delas se encontra em Isaias: “Estes escolheram os seus próprios caminhos, e a sua alma se deleita nas suas abominações, assim eu lhes escolherei o infortúnio e farei vir sobre eles o que eles temem; porque clamei, e ninguém respondeu, falei, e não escutaram; mas fizeram o que era mau perante mim e escolheram aquilo em que eu não tinha prazer” (Is 66.3-4). Do mesmo modo, lemos: “Deus fez o homem reto, mas ele se meteu em muitas astúcias” (Ec 7.29). Á culpa pelo mal é sempre da criatura responsável que o comete, seja homem, seja demônio, e a criatura que comete o mal sempre merece castigo. As Escrituras afirmam repetidamente que Deus é reto e justo para aos castigar pelos nossos pecados. E caso objetemos que ele não deveria encontrar falta mi nós, pois não podemos resistir à. sua vontade, então precisamos ponderar a resposta do próprio apóstolo Paulo a essa questão: “Tu, porém, me dirás: De que se queixa Ele ainda? Pois quem jamais resistiu à sua vontade? Quem és tu, ó homem, para discutir com Deus?! Porventura, pode o objeto perguntar a quem o fez Por que me fizeste assim (Rm 9.19-20). Em todas as ocasiões em que fazemos o mal, sabemos que voluntariamente - decidimos fazê-lo e percebemos que é com justiça que devemos ser culpados por isso.

d. O mal é real, não ilusão, e jamais devemos fazer o mal, pois ele sempre prejudicará a nós mesmos e os outros. As Escrituras ensinam repetidamente que jamais temos o direito de fazer o mal e que persistentemente devemos nos opor a ele em mesmos e no mundo. Devemos orar: “Livra-nos do mal” (Mt 6.13). E quando virmos alguém se desviando da verdade e fazendo algo errado, devemos tentar trazê-lo de volta. Dizem as Escrituras: “Se algum entre vós se desviar da verdade, e alguém o converter sabei que aquele que converte o pecador do seu caminho errado salvará da morte a alua dele e cobrirá multidão de pecados” (Tg 5.19-20). Jamais devemos nem sequer desejar mal, pois abrigar desejos pecaminosos na mente é permitir que eles “façam guerra” contra a nossa alma (1Pe 2.11) e, portanto que nos causem prejuízo espiritual. Quando foram tentados a dizer “Por que não fazer o mal para que venha o bem?”, como algum caluniosamente acusam Paulo de pregar, devemos lembrar que Paulo, sobre os ensinam essa falsa doutrina, afirma: “A condenação destes é justa” (Rm 3.8).

Ao refletir sobre o fato de Deus usar o mal para cumprir os seus desígnios, devemos lembrar que para Deus é justo fazer determinadas coisas, mas errado para nós: ele exige que os outros o adorem, e aceita deles a adoração. Busca a glória para si. Executará o juízo final dos malfeitores. Também usa o mal para bons fins, mas não nos permite fazê-1o Calvino cita com aprovação uma declaração de Agostinho: “Há uma grande diferença entre o que é adequado que o homem deseje e o que é adequado a Deus [...] Pois por intermédio dos maus desejos dos iníquos Deus realiza o que justamente deseja”. E Herman Bavinck usa a analogia de um pai que usa uma faca bem afiada, mas não permite que seu filho a use, para mostrar que Deus usa o mal para bons fins, mas jamais permite que seus filhos façam. Embora devamos imitar o caráter moral de Deus de muitas maneiras (cf. Ef 5.1), essa é uma das maneiras em que não devemos imitá-lo.

e. Apesar de todas as afirmações anteriores, chega um ponto em que nos vemos obrigados a confessar que não compreendemos como Deus pode ordenar que executemos atos maus e depois nos responsabilizar por eles, sem que o próprio Deus tenha culpa. Podemos afirmar que todas essas coisas são verdade, pois as Escrituras as ensinam. Mas a Bíblia não nos diz exatamente como Deus provoca essa situação, ou como Deus nos responsabiliza por aquilo que ordena que venha a acontecer. Nesse ponto a Bíblia se cala, e temos de concordar com Berkhof, considerando que em última análise “o problema da relação de Deus com o pecado permanece um mistério”.’

9. Somos “livres”? Temos “livre-arbítrio”? Se Deus exerce controle providencial sobre todos os eventos, será que em algum sentido somos livres? A resposta depende do que queremos dizer com a palavra livre. Em certos sentidos da palavra, todos concordam que somos livres na nossa vontade e nas nossas decisões. Com isso concordam até teólogos de renome dentro da tradição reformada ou calvinista. Tanto Louis Berkhof, em Teologia Sistemática, quanto João Calvino, em Institutas ou Tratado da Religião Cristã, aceitam falar em certo sentido em atos e escolhas “livres” do homem. Todavia, Calvino explica que o termo está tão sujeito a interpretações equivocadas que ele mesmo procura evitar seu uso, porque “o livre-arbítrio não é suficiente para permitir que o homem faça boas obras, a menos que seja auxiliado pela graça”.’ Portanto, conclui Calvino:

Então devemos considerar de fato que o homem tem essa espécie de livre decisão, não porque tenha livre escolha igualmente do bem e do mal, mas porque age impiamente segundo a sua vontade, não por compulsão. Excelente definição, de fato, mas por que dar nome tão altivo a coisa tão ínfima?

Calvino prossegue explicando como esse termo pode ser facilmente mal compreendido:

Mas, pergunto, quão poucos não são os que, ouvindo falar de livre-arbítrio como atributo do homem, não o concebem imediatamente senhor da sua própria mente e vontade, capaz por conta própria de inclinar-se quer ao bem quer ao mal. [ Se alguém, então, consegue usar essa palavra sem interpretá-la equivocadamente, não o incomodarei por conta disso E...] quanto a mim, prefiro não usá-la, e gostaria que outros, os que buscam o meu conselho, a evitem.

Assim, quando perguntamos se temos “livre-arbítrio”, é importante esclarecer o que palavra significa. As Escrituras em lugar nenhum dizem que somos “livres” no sentido de estar além do controle de Deus ou de ser capazes de tomar decisões não provocadas por algo. (E nesse sentido que muita gente parece supor que somos necessariamente livres;) Tampouco dizem que somos “livres” no sentido de ser capazes de agir retamente por contra própria, sem auxilio do poder divino. No entanto somos livres LO mais sublime sentido em que qualquer criatura de Deus poderia ser livre — fazemos escolhas voluntárias, escolhas que provocam resultados reais. Não temos consciência de nenhuma limitação divina à nossa vontade quando tomamos decisões. Precisamos insistir na idéia de que temos a capacidade da escolha voluntária; senão caímos no erro do fatalismo ou do determinismo, concluindo assim que nossas decisões não têm relevância, ou que não podemos na verdade fazer escolhas voluntárias. Por outro lado, tipo de liberdade exigida por aqueles que negam o controle divino providencial de todas as coisas, liberdade alheia à atividade sustentadora e controladora de Deus, é impossível e Jesus Cristo de fato está “continuamente carregando consigo as coisas pela sua palavra de poder” (Hb 1.3, tradução do autor). Se isso é verdade, então estar além desse controle providencial seria simplesmente não existir! Uma “liberdade” absoluta, totalmente livre do controle de Deus, é simplesmente impossível num mundo providencialmente sustentado e dirigido pelo próprio Deus.



Fonte: Grundem, Wayne, Teologia Sistemática, Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, São Paulo- SP pp 254 - 261

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segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

AS OBRAS DE DEUS


A Criação

Por que, como e quando Deus criou o universo?

EXPLICAÇÃO E BASE BÍBLICA

Corno Deus criou o mundo? Será que criou diretamente cada espécie distinta de planta e animal ou será que usou algum tipo de processo evolutivo, orientando o desenvolvimento das coisas vivas, da mais simples a mais complexa? E em quanto tempo Deus realizou a criação? Será que tudo foi concluído dentro de seis dias de vinte e quatro horas ou será que usou milhares ou talvez milhões de anos? Qual a idade da terra, e qual a idade da raça humana?

Sempre deparamos com essas perguntas ao tratar da doutrina da criação. Ao contrário da maior parte do material anterior deste livro, este capítulo trata de diversas questões sobre as quais os cristãos evangélicos têm pontos de vista distintos, às vezes bem fortemente arraigados.

Neste capítulo passaremos dos aspectos da criação mais claramente explicados nas Escrituras, sobre os quais quase todos os evangélicos concordariam (criação a partir do nada, criação especial de Adão e Eva e a bondade do universo), aos aspectos da criação sobre os quais os evangélicos discordam (se Deus usou algum processo evolutivo para executar boa parte da criação, e qual a idade da terra e da raça humana).

Podemos definir assim a doutrina da criação: Deus criou todo o universo do nada; este era originariamente muito bom, e ele o criou para glorificar a si mesmo.

A. DEUS CRIOU O UNWERSO DO NADA

1. Provas bíblicas da criação a partir do nada. A Bíblia claramente demanda que acreditemos que Deus criou o universo do nada. (As vezes se usa a expressão latina ex nihilo, “do nada”; diz-se então que a Bíblia prega a criação ex nihilo.) Isso significa que antes de Deus principiar a criação do universo, nada existia além do próprio Deus.

Essa é a implicação de Gênesis 1.1, que diz: “No principio, criou Deus os céus e a terra”. A frase “os céus e a terra” abarca todo o universo. O salmo 33 também nos diz: “Os céus por sua palavra se fizeram, e, pelo sopro de sua boca, o exército deles [...] Pois ele falou, e tudo se fez; ele ordenou, e tudo passou a existir” (Si 33.6, 9). No Novo Testamento, encontramos uma declaração universal no início do evangelho de João: Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez”(Jo 1.3). A melhor interpretação da expressão “todas as coisas” é “todo o universo” (cf. At 17.24; Hb 11.3). Paulo é bem explícito em Colossenses 1 quando especifica todas as partes do universo, as coisas visíveis e as invisíveis: “Pois, nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele” (Cl 1.16). O cântico dos vinte e quatro anciãos no céu igualmente afirma essa verdade:

“Tu és digno, Senhor e Deus nosso, de receber a glória, a honra e o poder, porque todas as coisas tu criaste, sim, por causa da tua vontade vieram a existir e foram criadas” (Ap 4.11).

Na última frase diz-se que a vontade de Deus foi a razão pela qual as coisas passaram afinal a “existir’ e pela qual “foram criadas”.

O fato de ter Deus criado os céus e a terra, e tudo o que neles há, é afirmado várias outras vezes no Novo Testamento. Por exemplo, Atos 4.24 fala de Deus como “Soberano Senhor, que fizeste o céu, a terra, o mar e tudo o que neles há” Uma das primeiras maneiras de identificar a Deus é dizer que ele criou todas as coisas. Barnabé e Paulo explicam à platéia pagã em Listra que são mensageiros de um “Deus vivo, que fez o céu, a terra, o mar e tudo o que há neles” (At 14.15). Do mesmo modo, quando Paulo fala aos filósofos gregos pagãos em Atenas, ele identifica o Deus verdadeiro como o “Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe” e diz que esse Deus “a todos dá vida, respiração e tudo mais” (At 17.24-25; cf. Is 45.18; Ap 10.6).

Hebreus 11.3 diz: “Pela fé entendemos que o universo foi formado pela palavra de Deus, de modo que o que se vê não foi feito do que é visível” (NvI). Essa tradução espelha de modo bastante preciso o texto grego. Embora o texto não ensine exatamente a doutrina da criação do universo a partir do nada, chega perto disso, pois diz que Deus não criou o universo a partir de algo visível. A idéia um tanto canhestra de que o universo possa ter sido criado a partir de algo invisível provavelmente não passou pela cabeça do autor. Ele está contradizendo a idéia da criação a partir de matéria previamente existente, e para esse fim o versículo é bem claro.

Romanos 4.17 também implica que Deus criou do nada, ainda que não o afirme exatamente. O texto grego fala literalmente de Deus como aquele que “chama coisas não existentes como existentes”. A tradução da ARA, “chama à existência as coisas que não existem”, é incomum mas gramaticalmente possível, e faz uma afirmação explícita da criação a partir do nada. Porém, mesmo que traduzamos de modo que a palavra grega Fios assuma seu significado comum, “como”, o versículo diz que Deus “chama as coisas que não existem como existentes” (NASB mg.). Mas se Deus fala a algo que não existe (ou chama) como se de fato existisse, o que então está implícito? Se ele chama coisas que não existem como se existissem, o significado só pode ser que logo existirão, irresistivelmente chamadas à existência.

Como Deus criou todo o universo do nada, no universo não existe matéria eterna. Tu o que vemos — as montanhas, os oceanos, as estrelas, a própria terra — tudo veio a existir quando Deus o criou. Houve um tempo em que não existiam:

“Antes que os montes nascessem

e se formassem a terra e o mundo,

de eternidade a eternidade, tu és Deus” (SI 90.2).

Isso nos lembra que Deus rege todo o universo e que nada na criação deve ser adorado. Em lugar de Deus, ou além dele. Todavia, negando a criação a partir do nada, teríamos de afirmar que alguma matéria já existia e que é eterna como Deus. Tal idéia desafiaria a independência de Deus, sua soberania, e o fato de que só a ele devemos culto: se a matér existisse além de Deus, então que direito inato teria Deus de regê-la e usá-la para sua glória? E que certeza teríamos de que cada aspecto do universo irá no final cumprir os desígnios de Deus, se algumas partes dele não foram criadas por Deus?

O lado positivo do fato de ter Deus criado o universo do nada é que ele tem sentido e propósito. Deus, na sua sabedoria, o criou para algum fim. Devemos tentar compreender esse fim e usar a criação de modos que se conformem a esse fim, que é glorificar o próprio Deus. Além disso, sempre que a criação nos dá alegria (cf. lTm 6.17) devemos dar graças a Deus, que tudo fez.

2. A criação do universo espiritual. A criação de todo o universo abarca a criação de um reino de existência invisível e espiritual: Deus criou os anjos e outros tipos de seres celestiais, além dos animais e do homem. Também criou o céu como lugar onde a sua presença é especialmente evidente. A criação do reino espiritual está inequivocamente implícita em todos os versículos acima que afirmam que Deus criou não só a terra, mas também “o céu e tudo quanto nele existe” (Ap 10.6; cf. At 4.24), e está ainda explicitamente confirmada em vários outros versículos. A oração de Esdras diz bem claramente: “Só tu és SENHOR, tu fizeste o céu, o céu dos céus e todo o seu exército, a terra e tudo quanto nela há, os mares e tudo quanto há neles; e tu os preservas a todos com vida, e o exército dos céus te adora” (Ne 9.6). O “exército dos céus” nesse versículo parece referir- se aos anjos e outras criaturas celestes, pois Esdras diz que eles se ocupam da atividade de adorar a Deus (o mesmo termo exército é usado para falar de anjos que adoram a Deus em Sl 103.21 e 148.2).b

No Novo Testamento, Paulo especifica que em Cristo “foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele” (Cl 1.16; cf. Sl 148.2-5). Aqui a criação dos seres celestes invisíveis é também afirmada explicitamente.

3. A criação direta de Adão e Eva. A Bíblia também ensina que Deus criou Adão e Eva de um modo especial e pessoal. “Formou o SENHOR Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente” (Gn 2.7). Depois disso, Deus criou Eva do corpo de Adão: “Então, o SENHOR Deus fez cair pesado sono sobre o homem, e este adormeceu; tomou uma das suas costelas e fechou o lugar com carne. E a costela que o SENHOR Deus tomara ao homem, transformou-a numa mulher e lha trouxe” (Gn 2.21-22). Deus aparentemente fez que Adão soubesse algo do que acontecera, pois disse este:

“Esta, afinal, é osso dos meus ossos

e carne da minha carne;

chamar-se-á varoa,

porquanto do varão foi tomada” (Gn 2.23).

Como veremos abaixo, os cristãos divergem quanto à extensão da evolução que pode ter ocorrido após a criação, talvez (segundo alguns) levando ao desenvolvimento de organismos cada vez mais complexos. Embora entre alguns cristãos haja nesse ponto divergências defendidas com ardor a respeito dos reinos vegetal e animal, esses textos são tão explícitos que seria muito difícil alguém sustentar, com completa fidelidade às Escrituras, que os seres humanos são resultado de um longo processo evolutivo, isso porque quando a Bíblia diz que o Senhor “formou [...] ao homem do pó da terra” (Gn 2.7), não parece possível entender que ele o tenha feito por um processo que levou milhões de anos numa evolução aleatória de milhares de organismos cada vez mais complexos. Ainda mais difícil de harmonizar com urna visão evolutiva é o fato de essa narrativa claramente afirmar que Eva não tem mãe: foi criada diretamente da costela de Adão enquanto este dormia (Gn 2.21). Mas numa linha de raciocínio puramente evolutiva, isso não seria possível, pois mesmo a primeiríssima “mulher” descenderia de alguma outra criatura meramente humana, que então não passaria de um animal, O Novo Testamento reafirma a historicidade dessa criação especial de Eva a partir de Adão; diz Paulo: “Porque o homem não foi feito da mulher, e sim a mulher, do homem. Porque também o homem não foi criado por causa da mulher, e sim a mulher, por causa do homem” (iCo 11.8-9).

A criação especial de Adão e Eva mostra que, embora nos pareçamos com os animais em muitos aspectos do nosso corpo físico, somos, no entanto muito diferentes deles. Fomos criados “à imagem de Deus”, o pináculo da criação divina, mais semelhantes a Deus do que qualquer outra criatura, nomeados para reger o resto da criação. Até a brevidade do relato da criação em Gênesis enfatiza prodigiosamente a importância do homem como ser distinto do restante do universo. Resiste assim às tendências modernas de encarar o homem como ser insignificante diante da imensidão do universo. Derek Kidner observa que as Escrituras se erguem

contra toda tendência de esvaziar de significado a história humana [...] apresentando os impressionantes atos da criação como preliminar do drama que lentamente se desenrola ao longo da Bíblia, O prólogo acaba numa página; mil outras vêm a seguir.

Por outro lado, Kidner observa que a moderna explicação científica do universo, por ‘verdadeira que seja,

nos sobrecarregam de estatísticas que reduzem nossa aparente importância ao ponto da insignificância. Não o prólogo, mas a própria história humana é agora uma única página em mil, e todo o volume terrestre se perde em meio a milhões não catalogados.

As Escrituras nos dão a perspectiva da importância humana que Deus quer que tenhamos.

4. A criação do tempo. Outro aspecto da criação divina é a criação do tempo (a i cessão de momentos consecutivos). Essa idéia já foi discutida juntamente com o atributo divino da eternidade e aqui nos basta resumi-la. Quando falamos da existência de Deus “antes” da criação do mundo, não devemos pensar que Deus exististe ao longo de uma infindável extensão de tempo. Antes, a eternidade de Deus implica que ele vive uma espécie diferente de existência, uma existência sem passagem de tempo, uma espécie de existência que para nós é até difícil de imaginar. (VerJó 36.26; Sl 90.2, 4;Jo 8.58; 2Pe 3.8; Ap 1.8). O fato de Deus ter criado o tempo nos lembra sua soberania sobre ele e nossa obrigação de usá-lo com vistas à glória divina.

5. O papel do Filho e do Espírito Santo na criação. Deus Pai foi o agente primordial, ao iniciar o ato da criação. Mas o Filho e o Espírito Santo também estiveram ativos. O Filho é muitas vezes descrito como aquele “por intermédio de” quem se deu a criação. “Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez” (Jo 1.3). Paulo diz que há “um só Senhor,Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas, e nós também, por ele” (1Co 8.6) e que “tudo foi criado por meio dele e para ele” (Cl 1.16). Lemos também que o Filho é aquele “pelo qual” Deus “fez o universo” (Hb 1.2). Essas passagens dão um retrato coerente do Filho como agente eficaz que executa os planos e as ordens do Pai.

O Espírito Santo também agiu na criação. Ele é geralmente retratado como aquele que conclui, preenche e dá vida à criação divina. Em Gênesis 1.2, “o Espírito de Deus pairava por sobre as águas”, indicando Uma função preservadora, sustentadora e regente Diz Jó: “O Espírito de Deus me fez, e o sopro do Todo-Poderoso me dá vida” (Jó 33.4). Em várias passagens do Antigo Testamento, é importante perceber que a mesma palavra hebraica (rûach) pode significar, em contextos diferentes, “espírito”, “sopro” ou “vento”. Mas em muitos casos não há muita diferença de significado, pois mesmo que alguém resolvesse traduzir algumas expressões como “sopro de Deus” ou mesmo como “vento de Deus”, ainda assim seria um modo figurado de referir-se à atividade do Espírito Santo na criação. Portanto o salmista, ao falar da grande variedade de seres da terra e do mar, diz: “Envias o teu Espírito, eles são criados” (Sl 104.30; ver também, sobre a obra do Espírito Santo,Jó 26.13; Is 40.13; lCo 2.10). Porém, é escasso o testemunho das Escrituras quanto à atividade especifica do Espírito Santo na criação. A obra do Espírito Santo ganha muito mais relevo quando se pensa na inspiração dos autores das Escrituras e na aplicação da obra redentora de Cristo ao povo de Deus.

B. A CRIAÇÃO É DISTINTA DE DEUS, PORÉM SEMPRE DELE DEPENDENTE

O ensino bíblico a respeito do relacionamento entre Deus e a criação é único entre as religiões do mundo. A Bíblia ensina que Deus é distinto da sua criação. Não faz parte dela, pois ele a fez e a governa. O termo muitas vezes usado para dizer que Deus é muito maior do que a criação é transcendente. Simplificando bastante, isso significa que Deus está bem “acima” da criação, no sentido de que é maior do que a criação e independente dela.

Deus está também sobremaneira envolvido na criação, pois ela continuamente depende dele para existir e manter-se em atividade. O termo técnico usado para exprimir o envolvimento de Deus na criação é imanente, que significa “permanecer dentro” da criação. O Deus da Bíblia não é uma divindade abstrata distante e desinteressada da sua criação. A Bíblia é a história do envolvimento de Deus com a sua criação, especialmente com as pessoas. Jó afirma que até os animais e as plantas dependem de Deus: “Na sua mão está a alma de todo ser vivente e o espírito de todo o gênero humano” (Jó 12.10). No Novo Testamento, Paulo afirma que Deus “a todos dá vida, respiração e tudo mais” e que “nele vivemos, e nos movemos, e existimos” (At 17.25, 28). De fato, em Cristo “tudo subsiste” (Cli. 17) e ele continuamente sustenta “todas as coisas pela palavra do seu poder” (Hb 1.3). A transcendência e a imanência de Deus são afirmadas simultaneamente num mesmo versículo, quando Paulo fala de “um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos” (Ef 4.6).

O fato de ser a criação distinta de Deus, porém sempre dependente dele, de estar Deus bem acima da criação, todavia sempre envolvido nela (resumindo, de ser Deus ao mesmo tempo transcendente e imanente), pode ser representado como na figura 15.1.

Isso se distingue claramente do materialismo, a filosofia mais comum entre os descrentes de hoje, que nega absolutamente a existência de Deus. O materialismo diria que o universo material é tudo o que existe. Pode ser representado como na figura 15.2.

A CRIAÇÃO É DISTINTA DE DEUS, PORÉM SEMPRE DEPENDENTE DE DEUS

(DEUS É AO MESMO TEMPO TRANSCENDENTE E IMANENTE)

Figura 15.1


Os cristãos que hoje concentram quase todos os seus esforços em ganhar mais dinheiro e acumular mais bens tornam-se materialistas “práticos” nas suas atividades, pois suas vidas não seriam muito diferentes se simplesmente não cressem em Deus.

MATERIALISMO

Figura 15.2


A explicação bíblica da relação de Deus com a sua criação também se distingue do panteísmo. A palavra grega pan significa “tudo” ou “todos”, e panteísmo é a idéia de que tudo, todo o universo, é Deus, ou faz parte de Deus. E possível retratar essa idéia como na figura 15.3.

O panteísmo nega vários aspectos essenciais do caráter de Deus. Se todo o universo é Deus, então Deus não tem personalidade distinta. Deus já não é imutável, pois quando o universo muda, Deus também muda. Além disso, Deus já não é santo, pois o mal do universo também faz parte de Deus. Outra dificuldade é que, em última análise, a maioria dos sistemas panteístas (como o budismo e muitas outras religiões orientais) acaba negando a importância das personalidades humanas: como tudo é Deus, a meta da pessoa deve ser fundir-se ao universo e cada vez mais unir-se a ele, perdendo assim a sua individualidade. Se o próprio Deus não tem identidade pessoal distinta do universo. certamente tampouco nós devemos nos esforçar por isso. Assim, o panteísmo destrói não só a identidade pessoal de Deus, mas também, em última análise, a dos seres humanos.

PANTEISMO

Figura 15.3


Qualquer filosofia que interprete a criação como “emanação” de Deus (ou seja, algo que procede de Deus mas permanece parte de Dèus, inseparável dele) seria semelhante ao panteísmo na maioria ou mesmo em todos os modos nos quais os aspectos do caráter divino são negados.

A explicação bíblica também afasta a hipótese do dualismo, que é a idéia de que Deus e o universo material existem eternamente lado alado. Assim, existem duas forças supremas no universo: Deus e a matéria. Pode-se representar essa idéia como na figura 15.4.

DUALISMO

Figura 15.4

O problema do dualismo é que ele sugere um conflito eterno entre Deus e os aspectos malignos do universo material. Irá Deus triunfar do mal no universo? Não podemos ter certeza disso, pois Deus e o mal aparentemente sempre existiram lado a lado. Essa filosofia nega a soberania absoluta de Deus sobre a criação e também que a criação veio a existir por causa da vontade divina, que deve ser usada exclusivamente para os desígnios divinos e que existe para glorificá-lo. Esse ponto de vista também nega que todo o universo foi criado inerentemente bom (Gn 1.31) e incentiva as pessoas a enxergar a realidade material como algo mau em si mesmo, em vez de uma explicação bíblica genuína da criação, que Deus fez boa e rege segundo os seus desígnios.

Um recente exemplo de dualismo na cultura moderna é a série de filmes Guerra nas Estrelas, que postula a existência de uma “Força” universal, que tem um lado bom e outro mau. Aí não existe o conceito de um Deus santo e transcendente que tudo governa e que certamente triunfará de tudo. Quando os não cristãos de hoje passam a se dar conta de um aspecto espiritual do universo, muitas vezes se tornam dualistas, reconhecendo meramente que existem aspectos bons e maus no mundo sobrenatural ou espiritual. A maioria das religiões da “Nova Era” é dualista. E claro que Satanás exulta ao ver gente pensando que no universo existe uma força má, equivalente talvez ao próprio Deus.

A visão cristã da criação também difere do ponto de vista do deísmo. Deísmo é a idéia de que Deus não está envolvido diretamente na criação. Pode ser representado como na figura 15.5.

DEISMO

Figura 15.5


O deísmo geralmente defende que Deus criou o universo e é bem maior do que ele (Deus é “transcendente”). Alguns deistas também admitem que Deus tem parâmetros morais e irá exigir prestação de contas no dia do juízo. Mas negam que Deus esteja atualmente envolvido no mundo, eliminando assim a possibilidade da imanência divina na ordem criada. Antes, Deus é encarado como um relojoeiro divino que dá corda ao “relógio” da criação no início, mas depois deixa que ele funcione sozinho.

Embora o deísmo afirme de fato a transcendência divina em alguns aspectos, nega quase toda a história bíblica, que é a história do envolvimento ativo de Deus no mundo. Hoje, muitos cristãos “mornos” ou de fachada são, na prática, deístas, pois vivem quasetotalmente alheios á genuína oração, à adoração, ao temor de Deus ou à confianc contínua em que Deus vã atender as necessidades que surgirem.

C. DEUS CRIOU O UNIVERSO PARA REVELAR A SUA GLÓRIA

É evidente que Deus criou seu povo para a sua própria glória, pois ele fala dos set filhos e fflhas como aqueles “que criei para minha glória, e que formei, e fiz” (Is 43.7). Mas Deus não criou para seus desígnios somente os seres humanos. Toda a criação tem p meta revelar a glória de Deus. Mesmo a criação inanimada — as estrelas, o sol, a lua e o firmamento — dá testemunho da grandeza de Deus. “Os céus proclamam a glória de Deus. e o firmamento anuncia as obras das suas mãos. Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite” (Si 19.1-2). O cântico de adoração celestial em Apocalipse 4 vincula o fato de ter Deus criado todas as coisas com o ser ele digno de receber glória por elas:

“Tu és digno, Senhor e Deus nosso,

de receber a glória, a honra e o poder,

porque todas as coisas tu criaste,

sim, por causa da tua vontade vieram a existir e foram criadas” (Ap 4.11).

O que a criação revela sobre Deus? Antes de tudo, mostra o grande poder e a grande sabedoria de Deus, bem acima de qualquer coisa que qualquer criatura possa imaginar.’ “O SENHOR fez a terra pelo seu poder; estabeleceu o mundo por sua sabedoria e com a sua inteligência estendeu os céus” (Jr 10.12). Em contraste com os homens ignorantes e os ídolos “sem valor” que eles fazem, diz Jerernias: “Não é semelhante a estas Aquele que é a Porção de Jacó; porque ele é o Criador de todas as coisas [ SENHOR dos Exércitos é o seu nome” (Jr 10.16). Basta olhar de relance o sol ou as estrelas para se convencer do infINito poder de Deus. E mesmo uma breve inspeção em qualquer folha de árvore, ou no prodígio da mão humana, ou em qualquer célula viva, convence-nos da grande sabedoria divina. Quem poderia fazer tudo isso? Quem poderia fazê-lo do nada? Quem poderia sustentá-lo dia após dia, por incontáveis anos? Tal poder infinito, tal complexa capacidade, está absolutamente além da nossa compreensão. Quando meditamos nisso, damos glória a Deus.

Quando afirmamos que Deus criou o universo para revelar a sua glória, é importante perceber que ele não precisava fazê-lo. Não devemos pensar que Deus precisava de mais glória do que já tinha dentro da Trindade por toda a eternidade, ou que ele estava de algum modo incompleto sem a glória que receberia do universo criado. Isso seria negar a independência de Deus e implicaria que Deus necessita do universo para ser plenamente Deus.’ Antes, devemos afirmar que a criação do universo foi um ato totalmente voluntário da parte de Deus. Não foi um ato necessário, mas algo que Deus decidiu fazer. “Todas as coisas tu criaste, sim, por causa da tua vontade vieram a existir e foram criadas” (Ap 4.11). Deus desejou criar o universo para demonstrar a sua excelência. A criação revela a grande sabedoria e o grande poder divinos, e em Última análise revela também todos os seus outros atributos.’ Parece que Deus criou o universo, então, para deleitar-se com a sua criação, pois ele se deleita com ela justamente porque a criação revela aspectos diversos do caráter divino.

Isso explica por que nós mesmos temos espontâneo prazer em todos os tipos de atividades criativas. Gente dotada de talento artístico, musical ou literário gosta de criar coisas e ver, ouvir ou apreciar sua obra criativa. E um dos aspectos impressionantes da humanidade — diferentemente do restante da criação — é a capacidade de criar coisas novas. Isso também explica por que temos prazer em outros tipos de atividade “criativa”: muita gente gosta de cozinhar, de decorar a casa ou de trabalhar com madeira ou outros materiais, ou ainda de produzir invenções científicas ou de conceber novas soluções para problemas na produção industrial. Toda criança gosta de colorir ilustrações ou construir casinhas com blocos de montar. Em todas essas atividades espelhamos em pequena medida a atividade criadora de Deus, e nisso devemos encontrar prazer, dando graças a ele.

D. O universo que Deus criou era “muito bom”

Esse ponto é a seqüência do ponto anterior. Se Deus criou o universo para mostrar a sua glória, então devemos esperar que o universo cumpra o propósito para o qual ele o criou. De fato, quando Deus terminou a sua obra de criação, ele teve prazer nela. No final de cada estágio da criação, Deus viu que o que ele havia feito era bom (Gn 1.4,10,12,18,21,25). Então, no final dos seis dias da criação, “...Deus viu tudo o que havia feito, e tudo havia ficado muito bom” (Gn 1.3 1). Deus teve prazer na criação que ele havia feito exatamente como havia proposto fazer.

Mesmo havendo pecado no mundo agora, a criação material é ainda boa à vista de Deus e deveria ser vista como “boa” por nós também. Esse conhecimento vai nos livrar de um ascetismo falso que vê o uso e o prazer da criação material como errado. Paulo diz que “... tudo o que Deus criou é bom, e nada deve ser rejeitado, se for recebido com ação de graças, pois é santificado pela palavra de Deus e pela oração” (lTm 4.4,5).

Embora a ordem criada possa ser usada de modos pecaminosos ou egoístas, e possa desviar de Deus o nosso afeto, assim mesmo não devemos deixar que o perigo do mau uso da criação divina nos afaste de um uso positivo, grato e alegre dela, para deleite nosso e para o bem do reino de Deus. Pouco depois de Paulo alertar sobre o desejo de ser rico e sobre o “amor do dinheiro” (lTm 6.9-10), ele afirma que é o próprio Deus “que tudo nos proporciona ricamente para nosso aprazimento” (lTm 6.17). Esse fato autoriza os cristãos a estimular o correto desenvolvimento industrial e tecnológico (ao lado do cuidado ambiental) e o uso alegre e grato de todos os produtos da terra abundante que Deus criou — tanto por nós mesmos quanto por aqueles com quem devemos partilhar generosamente os nossos bens (repare lTm 6.18). No entanto, em tudo isso devemos lembrar que os bens materiais são apenas temporários, não eternos. Devemos depositar s nossas esperanças em Deus (ver Si 62.10; lTm 6.17) e na vinda de um reino que não ode ser abalado (Cl 3.1-4; Hb 12.28; iPe 1.4).

FONTE: GRUNDEM, Wayne, Teologia Sistemática, São Paulo, Edições Vida Nova, 1999. pp 198 - 207

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A Providência Divina

Se Deus controla todas as coisas, será que nossos atos podem ter significado real? Quais s os decretos de Deus?

EXPLICAÇÃO E BASE BÍBLICA

Quando entendemos que Deus é o Criador todo-poderoso, parece sensato concluir que ele também preserva e governa tudo no universo. Embora o termo providência não se encontre nas Escrituras, tem sido tradicionalmente usado para resumir a contínua relação de Deus com a sua criação. Quando aceitamos a doutrina bíblica da providência, evitamos quatro erros comuns na concepção do relacionamento de Deus com a criação. A doutrina bíblica não é o deísmo (que ensina que Deus criou o mundo e depois, essencialmente, abandonou-o) nem o panteísmo (que prega que a criação não tem uma existência real e distinta em si mesma, mas meramente faz parte de Deus), mas a providência, que ensina que embora Deus, em todos os momentos, se relacione e se envolva ativamente com a criação, esta é distinta dele. Além disso, a doutrina bíblica não ensina que os acontecimentos da criação são determinados pelo acaso (ou casualidade), nem são eles determinados por um destino impessoal (ou determinismo), mas por Deus, que é o Criador e Senhor pessoal, porém infinitamente poderoso.

Podemos definir assim a providência divina: Deus está continuamente envolvido com todas as coisas criadas de forma tal que (1) as preserva como elementos existentes, que conservam as propriedades com que ele os criou; (2) coopera com as coisas criadas em cada ato, dirigindo as suas propriedades características afim de fazê-las agir como agem; e (3) as orienta no cumprimento dos seus propósitos.

Dentro da categoria geral da providência temos três subtópicos, segundo os três elementos da definição acima: (1) Preservação, (2) Cooperação e (3) Governo.

Examinaremos cada um desses separadamente, para depois analisar as idéias divergentes e as objeções à doutrina da providência. E importante observar que essa é na doutrina em que se nota substancial desacordo entre os cristãos desde os primórdios a história da igreja, especialmente com respeito à relação de Deus com as decisões volitivas dos seres morais. Neste capítulo apresentaremos antes de tudo um resumo do ponto de vista defendido neste livro (a posição comumente dita “reformada” ou “calvinista.”),’ para depois considerar os argumentos em favor da outra posição (comum chamada “arminiana”).

A. PRESERVAÇÃO

Deus preserva todas as coisas criadas como elementos existentes, que conservam propriedades com que ele os criou.

Hebreus 1.3 nos diz que Cristo está “sustentando todas as coisas pela palavra do poder”. A palavra grega traduzida como “sustentando” é pherõ (ferw), “carregar, suportar”. É usada comumente no Novo Testamento com o sentido de carregar algo de um lugar p outro, como nos seguinte exemplos: Lucas 5.18 (levar um paralítico num leito até Jesus João 2.8 (levar vinho ao encarregado do banquete) e 2Timóteo 4.13 (levar uma capa livros para Paulo). Não significa simplesmente “sustentar”, mas encerra a idéia de contra ativo e deliberado da coisa que se carrega de um lugar a outro. Em Hebreus 1.3, o u do gerúndio indica que Jesus está “continuamente carregando consigo todas as coisas” i universo pela palavra do seu poder. Cristo está ativamente envolvido na obra da providência.

Do mesmo modo, em Colossenses 1.17, Paulo diz de Cristo que “nele, tudo subsiste’. O termo “tudo” se refere a cada coisa criada do universo (ver v. 16), e o versículo afirma que Cristo mantém a existência de todas as coisas — nele, elas continuam a existir ou a “perdurar” (NASU mg.). Os dois versículos indicam que se Cristo interrompesse a sua contínua atividade de sustentação de todas as coisas do universo, tudo exceto o Deus triúno instantaneamente deixaria de existir. Isso também é ensinado por Paulo, quando diz que “nele vivemos, e nos movemos, e existimos” (At 17.2 8), e por Esdras: “Só tu es SENHOR, tu fizeste o céu, o céu dos céus e todo o seu exército, a terra e tudo quanto nela há, os mares e tudo quanto há neles; e tu os preservas a todos com vida, e o exército dos céus te adora” (Ne 9.6). Pedro também diz que “os céus que agora existem e a terra” estão “reservados para o Dia do juízo” (2Pe 3.7).

Um aspecto da providencial preservação divina é o fato de ele continuamente nos dar a respiração, a cada momento. Eliú, na sua sabedoria, diz que “Se Deus pensasse apenas em si mesmo e para si. recolhesse o seu espírito e o seu sopro, toda a carne juntamente expiraria, e o homem voltaria para o pó” (Jó 34.14- 15; cf. Si 104.29).

Deus, ao preservar todas as coisas que fez, também as faz conservar as propriedades com que as criou. Deus preserva a água de forma tal que continue sendo água. Faz a grama continuar sendo grama, com todas as suas características distintivas. Faz o papel em que esta frase está escrita continuar a ser papel, de modo que não se dissolva espontaneamente em água e se perca flutuando, nem se transforme numa coisa viva e comece a crescer! Até que sofra a ação de outra parte da criação, tendo portanto alteradas as suas propriedades (por exemplo, quando queimado com fogo e transformado em cinzas), esse papel continuará a ser papel, contanto que Deus preserve a terra e a criação que ele fez.

Não devemos, porém, conceber a preservação divina como uma contínua nova criação: ele não cria continuamente novos átomos e moléculas para cada coisa existente a cada momento. Antes, preserva o que já foi criado: “carrega consigo todas as coisas” pela sua palavra de poder” (Hb 1.3, tradução do autor). Devemos considerar ainda que as coisas criadas são reais, e suas características, também reais. Não imagino apenas que a pedra que seguro na mão é dura — ela é dura. Se bato na cabeça com ela, não imagino apenas que machuca — machuca mesmo! Como Deus preserva essa pedra conservando as propriedades com que a criou, ela é dura desde o dia em que foi formada e (a menos que outra coisa criada aja sobre ela e a modifique) será dura até o dia em que Deus destruir os céus e a terra (2Pe 3.7, 10-12).

A providência divina proporciona fundamento para a ciência: Deus fez e continua a sustentar um universo que age de maneiras previsíveis. Se um experimento científico dá determinado resultado hoje, podemos confiar em que (se todos os fatores forem os mesmos) dará o mesmo resultado amanhã e daqui a cem anos. A doutrina da providência também fornece fundamento para a tecnologia: posso ter certeza de que a gasolina fará meu carro rodar hoje, assim como o fez ontem, não simplesmente porque “sempre funcionou assim”, mas porque a providência divina sustém o universo, no qual as coisas criadas conservam as propriedades com que ele as fez, O resultado pode ser semelhante na vida de um descrente como na vida de um cristão: ambos colocamos gasolina no carro e saímos dirigindo. Mas ele o fará sem saber a razão última por que a coisa funciona assim, e eu o farei com o conhecimento da verdadeira razão última (a providência divina) e com gratidão ao meu Criador pela maravilhosa criação que ele fez e preserva.

B. COOPERAÇÃO

Deus coopera com as coisas criadas em cada ato, dirigindo as suas propriedades características a fim de fazê-las agir como agem.

Esse segundo aspecto da providência, a cooperação, é uma ampliação da idéia contida no primeiro aspecto, a preservação. De fato, alguns teólogos (como João Calvino) tratam o fato da cooperação dentro da categoria da preservação, mas vale a pena tratá-lo como categoria distinta.

Em Efésios 1.11, Paulo diz que Deus “faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade”. A palavra traduzida por “faz” (energcõ) indica que Deus “elabora” ou “realiza” todas as coisas segundo a sua própria vontade. Evento nenhum da criação escapa à sua providência. Logicamente esse fato fica oculto aos nossos olhos a menos que o leiamos nas Escrituras. A exemplo da preservação, a obra divina de cooperação não é claramente patente apenas pela observação do mundo natural que nos cerca.

Com o intuito de apresentar provas bíblicas da cooperação, começamos pela criação inanimada, depois passamos aos animais e finalmente abordamos os diferentes tipos de acontecimentos da vida dos homens.

1. A criação inanimada. Há muitas coisas na criação que concebemos como ocorrências meramente “naturais”. Contudo, as Escrituras afirmam que Deus as faz acontecer. Lemos que “fogo e saraiva, neve e vapor e ventos procelosos [...] lhe executam apalavra” (Sl 148.8). Igualmente,

Ele diz à neve Cai sobre a terra;

e à chuva e ao aguaceiro: Sede fortes.

[...] Pelo sopro de Deus se dá a geada,

e as largas águas se congelam.

Também de umidade carrega as densas

nuvens, nuvens que espargem os relâmpagos.

Então, elas, segundo o rumo que ele dá, se espalham

para uma e outra direção.

para fazerem tudo o que lhes ordena

sobre a redondeza da terra.

E tudo isso faz ele vir para disciplina, se convém à terra,

ou para exercer a sua misericórdia.

(Jó 37.6-13; c.f afirmações semelhantes em 38.22-30)

Ainda, o salmista declara que “Tudo quanto aprouve ao SENHOR, ele o fez, nos céus e na terra, no mar e em todos os abismos” (Si 135.6), e depois, na frase seguinte, exemplifica como Deus impõe a sua vontade ao clima: “Faz subir as nuvens dos confins da terra, faz os relâmpagos para a chuva, faz sair o vento dos seus reservatórios” (SI 135.7; cf. 104.4).

Deus também faz a relva crescer: ‘ crescera relva para os animais e as plantas, para o serviço do homem, de sorte que da terra tire o seu pão” (Sl 104.14). Deus dirige estrelas dos céus, perguntando a Jó: “... Poderás [...] fazer aparecer os signos do Zodíaco ou guiar a Ursa com seus filhos?” (Jó 3 8.32; a “Ursa”, ou a Ursa Maior, é também chamada Carro de Davi; o v. 31 se refere às constelações das Plêiades e de Orion). Além disso, Deus dirige de contínuo o surgimento da manhã (Jó 3 8.12), fato que Jesus afirmou ao dizer que Deus ‘faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos” (Mt 5.45).

2. Os animais. As Escrituras afirmam que Deus alimenta os animais selvagens do campo, pois “todos esperam de ti que lhes dês de comer a seu tempo. Se lhes dás, eles o recolhem; se abres a mão, eles se fartam de bens. Se ocultas o rosto, eles se perturbam (Sl 104.27-29; cf.Jó 38.39-41).Jesus também afirmou isso ao dizer: “Observai as aves do céu E[...] vosso Pai celeste as sustenta”(Mt 6.26). E ele disse que nenhum pardal “cairá em terra sem o consentimento de vosso Pai” (Mt 10.29).

3. Acontecimentos aparentemente “aleatórios” ou “casuais”. De um ponto de vista humano, o ato de lançar sortes (ou seu equivalente moderno, jogar dados ou tirar cara ou coroa) é o mais típico dos eventos aleatórios que ocorrem no universo. Mas a Bíblia afirma que o resultado desse evento provém de Deus: “A sorte se lança no regaço, mas do SENHOR procede toda decisão” (Pv 16.33).2

4. Eventos totalmente provocados por Deus e totalmente provocados também pelas criaturas. Para todos os eventos anteriores (a chuva e a neve, o crescimento da relva, o sol e as estrelas, o sustento dos animais ou o lançar sortes), poderíamos (pelo menos em teoria) dar uma explicação “natural” absolutamente satisfatória. Um botânico pode detalhar os fatores que fazem a relva crescer, como o sol, a umidade, a temperatura, os nutrientes do solo, etc. Porém dizem as Escrituras que Deus faz a relva crescer. Um meteorologista pode dar uma explicação completa dos fatores que provocam a chuva (umidade, temperatura, pressão atmosférica, etc.) e pode até produzir chuva num laboratório de meteorologia. Dizem, porém, as Escrituras que Deus provoca a chuva. Um físico, munido de informações precisas sobre a força e a direção com que um par de dados foi jogado poderia explicar plenamente o que fez os dados darem o resultado que deram — porém dizem as Escrituras que a Deus pertence a decisão da sorte lançada.

Isso nos mostra que é errado pensar que, se conhecemos a causa “natural” de algo deste mundo, então não é Deus quem o provoca. Antes, se chove devemos agradecer a ele. Se a plantação cresce, devemos graças a ele. Em tudo isso, não é como se o evento fosse parcialmente provocado por Deus e parcialmente por fatores do mundo criado. Se assim fosse, então estaríamos sempre buscando alguma modesta característica de um evento, característica que não pudéssemos explicar, para atribuí-la (1 por cento da causa, digamos) a Deus. Mas essa, certamente, não é uma idéia correta. Em vez disso, essas passagens afirmam que tais eventos são integralmente provocados por Deus. Porém, sabemos que (noutro sentido) são também integralmente provocados pelos fatores da criação.

A doutrina da cooperação afirma que Deus dirige as propriedades distintivas de cada coisa criada e age por intermédio delas, de modo que essas coisas mesmas gerem os resultados que vemos. Assim é possível afirmar que em certo sentido os eventos são totalmente (100 por cento) causados por Deus e totalmente (100 por cento) também causados pelas criaturas. Todavia, as causas divinas e das criaturas agem de modos diferentes. A causa divina de cada evento age como causa invisível, diretiva e subjacente e, portanto, pode ser chamada «causa primária”, que planeja e inicia tudo o que acontece. Mas a coisa criada gera os atos de modos compatíveis com as suas propriedades, modos que podem muitas vezes ser descritos por nós ou por cientistas profissionais que observem os processos com meticulosidade. Esses fatores e propriedades das criaturas podem portanto ser chamados causas “secundárias” de tudo o que acontece, ainda que sejam as causas que se nos revelam patentes pela observação.

5. As questões nacionais. As Escrituras também falam do controle providencial divino das questões humanas. Lemos que Deus “multiplica as nações e as faz perecer; dispersa-as e de novo as congrega” (Jó 12.23). “Pois do SENHOR é o reino, é ele quem governa as nações” (Sl 22.2 8). Ele já determinou o tempo de existência e o lugar de cada nação na terra, pois Paulo diz: [Deus] “de um só fez toda a raça humana para habitar sobre toda a face da terra, havendo fixado os tempos previamente estabelecidos e os limites da sua habitação” (At 7.26; cf. 14.16). E quando Nabucodonosor se arrependeu, aprendeu a louvar a Deus:

Louvei, e glorifiquei ao que vive para sempre,

cujo domínio é sempiterno, e cujo reino é de geração em geração. Todos os moradores da terra são por ele reputados em nada;

e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu

e os moradores da terra;

não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer:

Que fazes? (Dn 4.34-35)

6. Todos os aspectos da nossa vida. É surpreendente ver até que ponto as Escrituras atribuem a Deus os vários eventos da nossa vida. Por exemplo, nossa dependência de Deus para o alimento de cada dia é afirmada cada vez que oramos “O pão nosso de cada dá-nos hoje” (Mt 6.11), ainda que trabalhemos pelo nosso alimento e (até onde a mera observação humana pode alcançar) o obtenhamos por meio de causas totalmente naturais”. Do mesmo modo, Paulo, mirando as coisas com os olhos da fé, afirma que “o meu Deus [...] há de suprir [...] cada uma de vossas necessidades” (Fp 4.19), mesmo que usem meios “comuns” (como, por exemplo, outras pessoas) para fazê-lo.

Deus planeja os nossos dias antes mesmo que nasçamos, pois afirma Davi: “No teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando nem um deles havia ainda” (Si 139.16). E Jó diz que “os seus dias [do homem] estão contados, contigo está o número dos seus meses; tu ao homem puseste limites além dos quais não passará» (Jó 14.5). Isso se pode ver na vida de Paulo, que diz que Deus “me separou antes de eu nascer” (Gl 1.15), e de Jeremias, a quem disse Deus: “Antes que eu te formasse no ventre materno, eu te conheci, e, antes que saísses da madre, te consagrei, e te constituí profeta às nações” (Jr 1.5).

Todas as nossas ações dependem do cuidado providencial de Deus, pois “nele vivemos, e nos movemos” (At 17.2 8). Cada passo que damos diariamente é dirigido pelo Senhor.Jeremias confessa: «Eu sei, ó SENHOR, que não cabe ao homem determinar o seu caminho, nem ao que caminha o dirigir os seus passos” (Jr 10.23). Lemos que “os passos do homem são dirigidos pelo SENHOR” (Pv 20.24) e que “o coração do homem traça o seu caminho, mas o SENHOR lhe dirige os passos” (Pv 16.9). Do mesmo modo, Provérbios 16.1 afirma: “O coração do homem pode fazer planos, mas a resposta certa dos lábios vem do SENHOR”.

O sucesso e o fracasso provém de Deus, pois lemos: “Porque não é do Oriente, não é do Ocidente, nem do deserto que vem o auxílio. Deus é o juiz; a um abate, a outro exalta” (Si 75.6-7). Portanto Maria pôde dizer que Deus “derribou do seu trono os poderosos e exaltou os humildes” (Lc 1.52). O SENHOR dá os filhos, pois eles são “herança do SENHOR [...] o fruto do ventre, seu galardão” (Si 127.3).

Todos os nossos talentos e capacidades provêm do Senhor, pois Paulo pergunta aos coríntios: “E que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te vanglorias, como se o não tiveras recebido?” (1 4.7). Davi sabia que sua destreza militar era dádiva de Deus, pois, embora ele certamente dedicasse muitas horas ao treino do uso do arco e flecha, disse de Deus: “Ele adestrou as minhas mãos para o combate, de sorte que os meus braços vergaram um arco de bronze” (Si 18.34).

Deus influencia os governantes nas suas decisões, pois “Como ribeiros de águas assim é o coração do rei na mão do SENHOR; este, segundo o seu querer, o inclina” (Pv 21.1). Exemplo disso foi quando o Senhor mudou “o coração do rei da Assíria” a favor do seu povo, “para lhes fortalecer as mãos na obra da Casa de Deus, o Deus de Israel” (Ed 6.22), ou quando “despertou o SENHOR o espírito de Ciro, rei da Pérsia” (Ed 1.1) para ajudar o seu povo de Israel. Mas não é só o coração do rei que Deus influencia, pois ele “observa todos os moradores da terra” e “forma o coração de todos eles” (SI 33.14- 15). Se nos damos conta de que nas Escrituras o coração é a sede dos nossos pensamentos e desejos mais íntimos, a passagem cresce em importância. Deus orienta especialmente os desejos e as inclinações dos crentes, efetuando em nós “tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade” (Fp 2.13).

Todas essas passagens, que fazem afirmações genéricas sobre a obra divina na vida de todas as pessoas e que também dão exemplos específicos da obra de Deus na vida de cada um, levam-nos a concluir que a obra providencial divina de cooperação inclui todos os aspectos da nossa vida. Nossas palavras, nossos passos, nossos movimentos, nosso coração, nossa capacidade — tudo provêm do Senhor.

Mas importa evitar uma compreensão equivocada. Aqui também, como no caso da criação inferior, a direção providencial de Deus como “causa primária”, invisível, subjacente, não nos deve fazer negar a realidade das nossas decisões e ações. As Escrituras repetidamente afirmam que realmente fazemos acontecer os eventos. Somos importantes e responsáveis. Temos de fato escolhas, e essas escolhas são reais e nos trazem resultados reais. As Escrituras também afirmam insistentemente essas verdades. Assim como a pedra é realmente dura porque Deus a fez dotada da propriedade da dureza, assim como a água é realmente úmida porque Deus a fez dotada da propriedade da umidade, assim como as plantas são realmente vivas porque Deus as fez dotadas da propriedade da vida, também nossas escolhas são escolhas reais e têm de fato efeitos importantes, pois Deus nos fez de modo tão maravilhoso que quis nos agraciar com a propriedade da escolha pela vontade.

Um dos modos de considerar essas passagens sobre a cooperação de Deus é dizer que, se nossas escolhas são reais, não podem ser causadas por Deus (ver abaixo uma análise mais aprofundada desse ponto de vista). Mas o numero de passagens que afirmam esse controle providencial de Deus é tão considerável, e as dificuldades envolvidas em dar-lhes alguma outra interpretação são tão insuperáveis, que essa não me parece a maneira correta de abordá-las. Parece melhor afirmar que Deus faz todas as coisas que acontecem, mas ele o faz de maneira tal que de algum modo garante nossa capacidade de tomar decisões voluntárias, responsáveis, decisões que tragam resultados reais e eternos, e pelas quais somos responsáveis. As Escrituras não nos explicam exatamente como Deus combina o seu controle providencial com as nossas decisões voluntárias e significativas. Mas em vez de negar üm ou outro aspecto (simplesmente por não conseguirmos explicar como ambos podem ser verdadeiros), devemos aceitar os dois numa tentativa de ser fiéis ao ensinamento de toda a Bíblia.

A analogia do dramaturgo que escreve uma peça pode-nos ajudar a compreender como ambos os aspectos podem ser verdadeiros. Na peça shakespeariana Macbeth, o personagem Macbeth assassina o rei Duncan. Ora (supondo por enquanto que esse é um relato de ficção), pode-se perguntar: “Quem matou o rei Duncan?” Em certo sentido, a resposta correta é “Macbeth”. No contexto da peça ele executou o assassinato e corretamente deve levar a culpa. Mas, noutro sentido, a resposta correta seria “William Shakespeare”, pois foi ele quem escreveu a peça, ele quem criou todos os personagens, ele quem escreveu a parte em que Macbeth mata o rei Duncan.

Não seria correto dizer que, porque Macbeth matou o rei Duncan, William Shakespeare não o matou. Tampouco seria correto dizer que, porque William Shakespeare matou o rei Duncan, Macbeth não o matou. Ambas as proposições são verdadeiras. No plano dos personagens da peça, Macbeth é plenamente (100 por cento) responsável pela morte do rei Duncan, mas no plano do autor da peça, William Shakespeare é plenamente (100 por cento) responsável pela morte do rei Duncan. De modo semelhante, podemos entender que em certo sentido Deus é plenamente responsável pela realização das coisas, e que noutro sentido nós também somos plenamente responsáveis pela realização das coisas (como criaturas).

Logicamente, alguém poderia contrapor que a analogia na verdade não resolve o problema, pois os personagens de uma peça não são pessoas reais; são somente personagens sem nenhuma liberdade própria, nenhuma capacidade de tomar decisões genuínas e assim por diante. Mas, contrapondo, podemos destacar que Deus é infinitamente maior e mais sábio do que nós. Embora nós, criaturas finitas que somos, possamos criar apenas personagens de ficção numa peça, e não pessoas reais, Deus, nosso Criador infinito, fez um mundo de verdade e nele nos criou como pessoas reais, tomam decisões voluntárias. Dizer que Deus não poderia criar um mundo no qual nos tomar decisões voluntárias (como alguns argumentam hoje; ver discussão abaixo) é simplesmente limitar o poder de Deus. Essa concepção também parece negar grande numero de passagens bíblicas.

FONTE: GRUNDEM, Wayne, Teologia Sistemática, São Paulo, Edições Vida Nova, 1999.

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